sábado, 21 de junho de 2025

Guairacã 6





Algo sobre a prisão inocente

 

Não se trata de história oral, que seria preciso expressa-la diante do rosto de alguém. Também não é um cordel, ilustrado com as figuras do cangaço, a caatinga, o mandacaru, o areal sem fim e a variante dos calangos sertanejos, a tomar sol sobre os pedrelhos, um fluxo gracioso entretecido de bilro. Talvez seja história de um dia, umas horas de encontro, ocorrido diante de um fogão a gás, pia de pedra preta sobre base de alumínio e madeira, mesa velha de compensado, cadeiras bambas, toalha de flor, uma confusão de papéis, dois violões de afinação criativa, cravelhas rodadas com certa fúria, as cordas retesadas em certas notas que não figuram em alfarrábios, cantigas de um lugar por escutar, memorizar, estas oriundas do extremo oposto ao catingal, onde o minuano uiva. Entre os papéis, pratos, copos, garrafas, biscoitos recheados de goiabada, erva de matear, vinho, bilha, ingredientes de refeição, temperos, água quente, oliva, páprica, cominho, sal, orégano, alecrim do pé, batatas, um amor de milênios.

 

E ele pisou o assoalho amadeirado, o peso da mocidade a despregar-se dos vidrilhos de um lenço amarrado ao pescoço, o pó das botinas a branquear os vãos. Depois, se verá que há ali, sob aquele pano bordado de pequenos espelhos, um vergão perigoso, ainda arrouxeado. Um relógio antigo, pouco acima da cabeça do velho Guairacã, marcava sete e meia. O estalajadeiro tinha o rosto tranquilo, a novidade chegava à Pousada do Riacho em penca naquele dia, o catajeca de Garnizé calhava bem. Não surpreendeu-lhe aquele rapaz triste, que perfumou o ambiente, fino porte, tez cansada. O que chamou a atenção foi, mesmo, o lenço. Uma tensão súbita, nascida de memórias rústicas, encheu o peito do bandeirante. Cumprimentou o hóspede, sem fazer contato visual mais significativo.

 

Será, este capítulo, parte da saga dos moradores do Riacho, um episódio insólito. Talvez, somente interesse à ameiva sob o vaso, o Gilseu, aquele arremedo de calango, habitante da pousada que, naquele dia, viu brilhar não o lenço, porém um corte de batata inglesa, que rolou das mãos da Jica diante de seus olhinhos sonolentos e foi-lhe surrupiado, pelo moço dos vidrilhos, com um atraso imperdoável de vinte segundos, a contar da queda até o momento da incorporação ao guisado, ai, a tola Jica e seu jeito trapalhão. Gilseu nunca saberia, se se tratava de manjar ou pedra preciosa o que viu. Só soube que brilhava. Quanto a Jica, o gemido que deu, Xairo Mariam, disse muito. 

 

Passado o difuso tempo entre olhar a Magda - até onde se sabe, noviça da Congregação Franciscana, terceira ordem Seráfica -, enquanto o catajeca sacolejava na estrada, e o juntar o pedaço cru da batata na cozinha, uma sensação de segurança nova. O rapaz do lenço de vidrilhos estabilizou o próprio tino, recostou-se ao balcão da recepção e deu com tecido leve, branco empoeirado, o fio que contornava a cintura e descia, balançoso e cúmplice. A menina era um candeeiro de metro e meio, uma Sant’Ana ao redor do mundo. Jorge paraibano não cabia em si, o aperto no pescoço não lhe deixava ir muito longe no encantar-se. Então, pareceu um relâmpago. Seria ilusão, ou era mesmo ameiva aquele ser, imóvel sob o vaso do corredor? A partir daquela distração fugaz, o ex detento fez do réptil uma chave. Se não sabia rezar, sabia identificar sinais. Xairo, Mariam.  Gilseu, a ameiva, se tornaria, breve, um camarada de falar sem falar, a quietude que todo homem possui dentro. 

 

Bom dia, azuis nos cinzentos do dia. Assim desenhou-se o sorriso tímido no rosto daquele dono de pousada, o Guairacã, aos excursionistas. Na lerdeza de um canto de mundo onde a natureza era mãe, a cachoeira chorava, as papeletas de identificação iam passando de mão em mão. Uns preencheram a ficha no balcão, outros usaram a mesa de refeições. Jica seguia com sua feitura do desjejum, atrapalhada com a presença do Jordano, o paleontólogo que tocava violão, debruçado à mesa da cozinha. Mais um quarto de hora se passou até que o grupo fosse encaminhado a seus respectivos aposentos, pela mesma Jica que compunha a refeição. Ficou combinado, às nove horas desceriam para merendar. Assim como os paleontólogos na véspera, os homens foram refrescar-se na bica de fora da casa. As mulheres, mais respeitosas entre si pela presença das noviças, aguardaram a vez na bica da casa de banho, esta suficientemente organizada para acomodá-las juntas, com alguma privacidade. 

 

Jica tratou de dividir os hóspedes. As noviças ficaram com a janela de frente para o riacho. Jorge aceitou dividir espaço com os dois universitários; da janela deles também se podia ver parte da queda d’água. Fátima, a lisboeta, ficou com o espaço que acomodava um casal, no segundo piso. Acostumada que era a muitos lances de escada, não reclamou dos doze degraus que deveria subir. Adele, que naquele reduto não seria conhecida como narcótica acolheu, quase que com gratidão, o mirante. Por último, o condutor Garnizé ficou bem instalado na cama do velho Guairacã. O bandeirante preferia dormir ao relento, como já foi contado, ou em um cadeirão perto do fogo, na cozinha. 

 

Um amigo disse uma vez: está nublado, mas o sol desperta ali, só se cobriu com o poncho. Guairacã piscou os olhos no momento em que o vidrilho refletiu o azul do céu. Verdade e consciência andam muito unidas nessa condição, o velho resmungou de si para si. A consciência não engana. Pode-se cobrir ela com outro poncho, até molhado. A verdade mora no conjugado, desvão da consciência.  A verdade difere da convicção. É o correto assentado, o bem proceder que repousa sob a forte camada de nuvem. Xairo, Mariam. Um alivio, toda vez que desagua. Jorge limitou-se a escutar o burburinho das vozes, suspirou ao ouvir a prece murmurada pelas noviças. O rapaz foi deixado em paz com sua nostalgia. Os moços estudados, que lhe fariam companhia no quarto, mostraram-se disponíveis para trocas amistosas. Deram-se as mãos Juvenal, Gaudêncio e Jorge. O mate esperaria, ainda mais dois dias. 

 

Ia virar a maçaneta Fátima, a lisboeta, quando Jordano Guerra, saído da cozinha, de violão contra o peito, rondou o corredor. Aquela senhora era tão familiar que o moço piscou quatro vezes até se dar conta. 

 

Caso os leitores habituais perguntem e aquele algo, sobre a prisão de Jorge no Farol do Cabo Branco, como o rapaz se juntou à excursão, de lenço ao pescoço, a esconder um vergão roxo, terão de esperar mais algum tempo para obter elucidações. Xairo, Mariam.

 

Dentes de pecari tajacu 

Gramínea e maricão

Silêncios, algum trovão

 

De palco em palco

De drama e pantomima

O coração batido

acende o lampião







quarta-feira, 21 de maio de 2025

Guairacã 5









Algo sobre Juanita  e a Pousada do Riacho

 

 

Juanita havia entrado antes de Letícia e Magda para a ordem. O pai a obrigara, para esconder sob o hábito uma gravidez indesejada. A moça tinha quatorze anos na ocasião. Filha caçula de estancieiros, serena e linda como os jacintos, quase não falava, a não ser com seres invisíveis. A mãe morrera no parto, de cansaço. Em dado instante, Juanita dobrava os joelhos onde estivesse, estendia os braços para o céu e claudicava textos longos, prolixos, que lembravam a São João da Cruz. Fora assim desde os três anos de idade. Chorava, chorava toda uma cascata de luz. Levava guampadas do pai, para que não bancasse a louca e o matasse de vergonha. Dessas preces, a menina se levantava e ia bater roupas no rio, sua função principal na casa com dez irmãos, todos homens. Como foi que embarrigou, ficará para outra ocasião saber. Fato é que chegou ao convento apavorada, com cerca de doze semanas. A Abadessa a recebeu pessoalmente no portão e logo a encaminhou a uma clausura sem janelas, no terceiro andar, sem que a moça visse ou ouvisse algo além de um longo corredor vazio e seis lances de dezessete degraus. O cubículo onde ficou por três dias tinha um colchão úmido a um canto, uma lâmpada de baixa amperagem que oscilava do teto. Dar com o balanço leve do fio foi um consolo, para alguém que precisava de ar. Havia uma abertura na parte de cima da porta, por onde passava um frio que mais jorrava carícia de santo. Ao escutar a chave correr no ferrolho, dobrou os joelhos. De seus lábios, com formato de botão de rosa, brotou o seguinte alento: Jesus era inocente. E o francês católico, ao ouvir isso, encaminhou-se para a guilhotina, confortado. Hoje é terça-feira, 20 de maio. A nona hora do dia está completa. Não longe desta clausura, o sol sorri. Amigos queridos, de todos os quadrantes do Universo, Paz. Sou mais humana do que imagino e este sentir não é nada confortável, a menos que eu me apoie na frase que inaugura meu calvário. Jesus era inocente. Gostaria de cantar sou cristã, cheia de amor e estrelinhas. É muito oscilante o sentimento. O meu lado racional é carrancudo à beça quanto a isso. Entendo, Jesus era inocente. Ontem também se disse: a ciência perdeu a razão. Então não sei, Amigos, o que será. Sei de agora. A paz está no meu peito. Sou capaz de praticar os silêncios das madrugadas.  Bendita a senhora de branco que me guardou aqui. Não é caso de guilhotina para mim, acho. Talvez abandono, em meio a madeiras, cal e frio. Apontar os fascistas, fariseus, comandos vermelhos, gangues terroristas, guerrilheiros, reacionários, latifundiários, bandidos de toda ordem, fácil. São referências também, quase que identificações. Ontem, o pensamento que veio apontava para andar de carruagem, sem merecer, que isso atrai ladrões. Faz sentido? Amigos, Jesus era inocente. Sei que tudo o que eu disser será usado contra mim no tribunal. Assim foi também com o Cristo. Havia nas falas d’Ele uma integridade, uma magnanimidade que está longe daqui. Jesus manteve o coração com o Pai, aceitou a prova e foi para o cadafalso, entre dois ladrões. Minha companhia, neste momento, são os Amigos. Não quero me impor cilícios ou torturas mais graves. Quero a sorte de um amor tranquilo. E não será com um parceiro de rio que terei isso. Também não quero saber a quantos abandonei, traí em outras existências. Penso que passamos muito da História em guerra, pelo nome de Jesus inclusive e que é justo pagar o que é devido. As provas contra mim apontam para estes fatores de risco, guerras, fora o autocídio, a maior das possibilidades, pelo que vivo neste momento. É provável que eu tenha desistido em cima da hora, quando a travessia estava quase integralmente cumprida. Sinto esta verdade bater, como se eu fora um rochedo sedimentar e a água do mar vergastasse, impiedosa e espumosa. Não me adianta cantar afasta de mim esse cálice. Penso no filho, sobre ele pedir a dor sobressalente da última moratória. Penso na mandíbula tensa com a qual ele articulou suas falas, este homem misterioso que saiu de um chapéu, do mundo de Alice, e quer renascer. Penso na bruxa Cubas, no significado de Misericórdia. Penso nas Princesas, as Patrícias e as Gigantes do Daomé. Penso nas escravas de Xerxes, em Ester. Nas colhedoras de cana. Em tantas, tantas mulheres, bendigo a todas. Penso nas garagens do Soweto e na impossibilidade de ter um carro. Não consigo chorar aqui, ficará úmido demais. Meu corpo trepida. Juanita tombou para frente, sobre a barriga, e um lago de sangue escorreu por baixo da porta.

 

Friinho, dia de marcenaria, de montagem de cenário para um auto a Maria de Nazaré, dia de provação e expiação. Dia de silêncio. Dia em que Juanita sofreu um aborto espontâneo. Dia de lixar paredes, ruído pouco. Um obstetra muito gentil veio, tratou da moça sob os olhos atentos da Abadessa, ali mesmo no cubículo. Ponto. Eu tenho problemas sérios com homens, mais ainda com mulheres, diria Juanita em confissão, dias depois daquele mar vermelho. Perdi o jeito com as crianças? Um menininho disse que não. Eu não vou falar de amor. Se me disserem que errei eu direi sim, eu sei. E não foi só um erro. Também pode ter sido um passo certo, para a Libertação. Vai-se saber. Jesus era inocente. Juanita dobrou os joelhos diante de sua confessora. Do que se trata toda  ilusão? Todo o percurso de uma jornada como a minha? Eu a quereria de outra forma? Sinceramente? Jesus, mesmo sabendo o passo a passo, parava para conversar com o Pai. Preciso me dar a este momento, com Ele, Jesus. Aguardo a chegada do parceiro de rio. Se eu pudesse pedir a Jesus, pediria o silêncio que me cabe, o silêncio meditativo, a serenidade respiratória. Pediria para que o nojo parasse, para que eu possa perdoar a mim, por ser inconsistente, incoerente. Gostei daquela ideia de que uma mente aturdida pode se curar da obsessão mais facilmente. Uma mente obnubilada talvez não resista, quando a separação é necessária, algo assim. Tenho grande preocupação. A Bá que cuidava da família, do pai, tão altiva no trabalho, enfrenta a luta contra um câncer. Eu sabia que havia essa possibilidade, dela estar doente. Pus a mão sobre o peito dela, rezei. As dores pararam. Agora que enfrento clausura, procurarei enviar-lhe fótons, toda vez que eu puder. Seu Ismael está na lide, no campo do pai. Peço que ele olhe pela Bá. Fui lá na estância falar com ele. É interessante, colocar nas pessoas o refrigério do qual necessitamos. Ele foi embora às dezesseis, um tanto afoito. Foi um dia difícil, para mim muito pesado. Fiquei na clausura por mais de uma hora após a saída do doutor. Eu imóvel, um pouco mergulhada em profunda melancolia, a vestir branco. Fui tentando falar com Ela, disse pra ‘Ela’ – Inteligência Suprema -  que a prova estava muito pesada, que eu estava trabalhando para aceitar o nada, o vazio, o imóvel. Mais para o final da estadia, atendi a um pedido estranho, por sacos de lixo e aspirador. Foi como voltar do Nirvana. Voltei ainda à clausura, suponho. Do lado de lá do muro, o serviço seguiu, o de enterrar os mortos. Pus os vasos que seu Ismael repatriou no lugar deles, as plantas sofrem, carecem poda para florir. Meditei minimamente sobre sanidade. Então alguém me chamou para ver. Pode ser que fiquemos mais um mês com este palco, alguém murmurou. Ou indefinidamente, vai-se saber. Eu espero tudo. Lembrei-me, muito, de um homem de cabelo branquinho, que falava comigo enquanto as roupas repousavam no quarador. O abandono não existe, dizia ele, um sorriso encantador. O doce homem também disse que o parceiro de rio se esforçou muito pra estar onde esteve, preferiria estar na casa dele. Que era para eu aceitar as coisas como são. Falou também de cantarmos, em algum momento, nas próximas vezes em que ele vier. Precisamos entender o que aconteceu, deixei a frase no ar. Sinceramente? Não sei se temos futuros. Dá a sensação de maturidade emocional e em seguida, destrambelha tudo. Eu também disse que esbarrei na cerca elétrica dele e pulei o muro, para o lado proibido dele. E agora? Ele precisa abrir o portão da cidade para eu sair. Faz sentido? Não sei explicar, mas experimentei um quase alívio ao fechar-se a porta da clausura, eu vestida de branco, como se eu tomasse posse do espaço que me emprestaram para viver. Creio, não vá esfriar tanto agora. Se o problema era frio, parece que foi resolvido, com certa classe, para eu me calar mesmo. Estou  assombrada, ainda, com a estrutura que se enjambrou. Se ontem falei sobre um raciocínio carrancudo, hoje direi que ele está em curto. Os sentimentos, escorreram com o sangue. Não estou somando lé com cré. Tempo instável, sem chuvas nesta quarta-feira, 21 de maio.

sexta-feira, 25 de abril de 2025

Guairacã 4





4 – gente que vai para o mar

 

 

Os paleontólogos ainda dormiam quando um ônibus muito antigo parou, há alguns metros da pousada. O sol mal despontara, um silêncio irmanado com o rolar das águas, nesse dia serenadas pela falta de chuvas. Uma ou outra ave madrugadeira noticiava as manchetes, seria dia quente e molengas. Um ou outro curioso abria fresta de porta, veneziana, a ver quem é que chegava por aquelas bandas, onde o bandeirante perdera as sandálias. Turistas em geral traziam riquezas, euforia, chamavam encontros de praça, cantoria e dança. Tomara, seu Guairacã permitisse um arrasta-pé ali no Rincão, há muito que não se bailava. 

 

Desembarcaram do catajeca nove viajores, que poderiam ter conexão entre si, se não de passado, de futuro. O primeiro foi Garnizé, o condutor. Sergipano sem pai ou mãe, criou-se na estrada a vender de um tudo, até ter dinheiro suficiente para comprar aquela cangalha, que dirigia há cerca de cinquenta anos. Garnizé encostava o carro nas rodoviárias, onde obtivera permissão para o fazer, e recebia passageiros assustadiços, no máximo dez adultos sem muita bagagem, que almejavam visitar ermos lugares, viver vida simples em excursão duvidosa. Garnizé permanecia com o grupo durante vinte e quatro dias e o devolvia à estação, todos saudáveis, satisfeitos e carregados de histórias com três páginas, desenhadas a nanquim. Os folders de passeios, que o motorista oferecia, vinham esboçados em literatura de cordel. Naquela manhã, o destino acertado foi a Pousada do Riacho. Era pegar ou largar.

 

A segunda figura, muito alta e magra, cabelo cortado a Chanel, roupas escuras, olhos contornados a cajal, unhas pintadas de preto, dedos repletos de anéis, coturnos, a narcótica Adele. Aqueles que leem os posts deste sitio hão de se lembrar dela, paciente psiquiátrica, internada em uma casa de idosos no litoral português. Não se trata, aqui, de reanimar queridos, como o fez magistralmente o José Mauro de Vasconcelos[1], mas é quase isso, talvez compaixão por uma existência tão desgraçada e patética, resumida a um desmanche de família sem adultério, ideações suicidas e um perder de vista de cartelas de Xanax, furtadas às enfermarias por onde passava. Nem a moça sabia ao certo sobre seu destino, que sentido tinha sua existência. Via-se que era jovem, sofrida, carregava imensa solidão. Nos últimos tempos, Adele fizera pacto consigo, de não assombrar mais ninguém. 

 

Três noviças da Congregação Franciscana, terceira ordem Seráfica. Delas, será falado mais adiante. Grudadas umas às outras, faziam lembras um cefalópode circense, antes de entrar em panela fervendo. Agora, era tratar de acomodá-las, o melhor possível, à vida fora da clausura. Ao vê-las, Garnizé as imaginou, a todas, suas esposas. Cuidava delas como se fora gatinhos miúdos. 

 

Uma senhora obesa, na casa dos cinquenta se supunha, dessas que perdem peso e tornam a engordar mais. Terninho Catalina e chapéu com uma pena espetada do lado direito, pele de porcelana antiga, sutilmente arcada, pés pequeninos. No momento, a senhora estava em fase esvaziada, trinta quilos a menos, olhar jovial, tudo nela arredondado e cheirando a glassê. Ela trazia consigo uma encomenda para o dono da pousada. 

 

Um ex detento, acusado de participar de um arrastão no Farol do Cabo Branco. Soube-se, um ano depois de seu encarceramento, que fora privado da liberdade injustamente. 

 

Dois palestrantes do curso livre de literatura. Pertenciam a renomada escola nacional. Vinham a procura de histórias de tradição oral para seus doutoramentos.

 

O grupo caminhou ordeiro e arrulhando entre si, menos as freiras, que rezavam as matutinas em silêncio. Garnizé tocou a sineta à porta da pousada e Jica não se demorou em abrir.

 

Ah, inigualável canto

Feito de esperas

De voleios efêmeros

 

De certo, testemunho mareado

Em preces entronizado

das fábulas Caetés



[1] Escritor brasileiro, autor de preciosidades como Meu pé de laranja lima, Rosinha minha canoa, Doidão.

quinta-feira, 27 de março de 2025

Guairacã 3




 Memória

 

Diante daquele fóssil, estranha opabinia mergulhada em formol, o velho Guairacã fez silêncio. O animal mais parecia drone submarino, pequena nave de outro mundo. Por instantes, o bandeirante entrou águas fundas, o mais fundo que deu. Só encontrou, nesse mergulho íntimo, gaiolas imensas, de prender narval, vazias; também uma força que lhe fugia dos ossos, do sangue, que lhe dera algumas botinas para caminhar, seguir mata adentro, mar afora. Para onde teria ido a primeira metade de sua existência, foi o que soube auferir. Trinta, quarenta anos, infância, juventude? Os paleontólogos lhe mostraram o achado logo após o jantar, deixaram que ele olhasse a peça até que fechassem a conta da hospedagem. 

 

Para afirmar-se bandeirante, Guairacã dispunha apenas dos instrumentos de garimpo muito rudimentares, além de um arco e flecha, que ele mantinha pendurados, na parede de entrada da Pousada do Riacho. Havia um saco de diamantes que ele nunca mostrara a ninguém, enterrado na parede, atrás de um primitivo óleo sobre tela onde posava a cachoeira. Para aquele que tocava as relíquias, uma plaquinha em madeira escavada, do lado direito da peça, a avisar cuidado, flecha envenenada.

 

Guairacã, depois de bebericar o chá de bardana, não escutou mais as vozes dos rapazes que contavam suas proezas, muita surpresa mata adentro, em busca de respostas do solo, das rochas. Parara diante da gaiola, o choro do filhote, a aproximação perigosa da mãe. Em sua face um ricto, de remorso. Não demorou muito, os três perceberam que o velho cochilava, perdera o interesse, assim entenderam. Despediram-se respeitosos e foram para o aposento que lhes coube. 

 

Jica pusera, sobre a escrivaninha, uma garrafa de chá digestivo, de efeito calmante, os rapazes dormiriam bem, mais um prato com bolachas de gengibre, feitas à mão. Foi ela também quem trouxe de volta o patrão, ele em pé atrás do balcão, olhos fechados. Com jeito amoroso, a faz tudo da Pousada tratou de levar o homem para cama, mais uma vez ele repousaria sem se banhar. Nessas condições de sonambúlico, o homem acabava indo pernoitar no quintal, em uma rede sob o jequitibá, sem tirar as botas. Pela madrugada, Jica sabia que haveria banho de cachoeira, então estava tudo bem. Ela conhecia esse costume de assuntar a cabeça, a procura de consolação, alguma saudade, amolação, desdita, que seu Gua num contava pruque tava caducanu já, caladão que só. Acostumado a ser conduzido daquele jeito, formalizado o seu estado senil, Guairacã deixou-se guiar. Assim que Jica fechou a porta, o homem pôs o casaco, endireitou-se e ainda pode olhar o sobrescrito do folhetim que chegara, com a posta restante da manhã. 

 

Eu olho a mata, o cipoal

Oiço cantiga, um pio doído

É meu lamento, corpo moído

Falta alimento no embornal

 

 

 

 

 

 

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

Guairacã 2

 





2 – Os visitantes

 

Aurélio Tognasi, Eurico Almeida e Jordano Guerra. Assim assinaram suas fichas na Pousada do Riacho, após discretos rapapés. No ficheiro, pontilhado que pedia a ocupação, escreveram paleontólogo. O velho Guairacã demorou-se sobre a palavra, mais tempo do que o suportável para quem veio de longe e precisa tirar as botinas. Jica, a camareira, preparara para os forasteiros o quarto mais próximo da cachoeira, que a essa hora era uma beleza de ouvir desaguar, dois metros e meio de queda redonda, a gorgulhar no pedredo, assim ela lhes segredou, cheia de dengo e cheiro de manjericão misturado a baunilha. Como ela também se ocupava da cozinha, logo foi aviar a janta e deixou os três diante da porta de um aposento estoico e limpo.

 

Havia um beliche e uma cama, uma escrivaninha em frente à janela, prateleiras e ganchos de pendurar na parede oposta, um espelho atrás da porta. Ainda sem ter coragem de entrar, os três tornaram a descer as escadas, para espanto de Guairacã, que tinha as fichas na mão. Queremos nos lavar antes de entrar no quarto, lá fora. Tem como? O pedido foi o melhor quebra gelo que poderia ter acontecido. Guairacã levantou as sobrancelhas e anuiu, acompanhou-os até o quintal, onde havia um puxado a céu aberto, com cortinado plástico, tudo limpo, onde se podia livrar de pó e barro em demasia. 

 

Enquanto Jordano tratou de espanar as sacolas, chapéus, botinas, Eurico pôs em uma bacia as camisas, ensaboou as três e colocou de molho para torcer quando a manhã viesse. A própria calça ele lavaria na bica, o mesmo que fazia Aurélio naquele instante, com o auxílio da escova de lavar as costas pendurada em um prego. Jica chegou-se na porta e estendeu a eles tecidos leves, para que se secassem. Depois de deixarem tudo em ordem, pendurado, de molho, puderam entrar menos cautelosos. Dirigiram-se ao quarto calçados com chinelas, camisa a lhes cobrir, sem macular a harmonia do lugar. Foi preciso concluir a higiene na casa de banho, vestir-se e dar conta de roupas íntimas, que foram estendidas em um fio caprichoso na sacada. Quando finalmente desceram para cear, sentiam-se apresentáveis e renovados. Jica trouxe um caldo rico de vegetais, um bom pedaço de pão fresco. Para a sobremesa, queijo e goiabada cascão. Os moços dispensaram o café. Aceitaram, de bom grado, um gole de licor de pequi e o foram beber junto ao balcão de Guairacã. No trajeto, Aurélio deu com um espécime de ameiva, sob um vaso de corredor. Apaixonou-se pelo réptil e pareceu ser correspondido. Jica contou que o jacarepinima foi ficanu, ficanu e seu Guiaracã si habituô, até nome o bicho tinha, Gilseu. Ela é qui não si dava cum calango, mais num mandava, intão deixava. E se riu de orelha a orelha ao primeiro moço que lhe deu trela. Jordano olhou com sutileza o amigo, a pedir discrição. 

 

A prosa dos cientistas com Guairacã durou até perto das doze badaladas do relógio da sala, o fóssil da opabinia aberto diante de uns olhos vadios.

 

Estrada longa, pedra de rio

Meu canto é ‘mor de acender pavio

Sigo descendo com meu jeguito


A minha viola é o meu abrigo

 

 

 

 

quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

Guairacã 1




                                                                    Fulvio Pennacchi







1 – O palco


Uma casa caiada, branca de janelas azuis e portal ramado, face norte, dois andares com três divisões cada um, mais casa de banho. No térreo, sala, escritório, cozinha. Ainda átrio e mirante. O jardim modesto dava morada a um jequitibá rosa jovem, dez metros de altura, um bosque virgem atrás, apenas uma clareira muito limpa para o poço artesiano. Construída, a casa, no início da rua principal há mais de uma centena de anos, a três passos de um riacho nervoso, que subia muito nas monções, posta ali, feito nova, no princípio do nada, para servir de prefeitura, ou escola, ou casa de rezar, ou hospital, ou padaria, ou alfândega, embaixada, também pousada e casa de cantoria, contação de histórias. 


Um ex bandeirante, de alcunha Guairacã, assim mesmo registrado em certidão, Guairacã da Silva, deu o tom daquele rincão que guardava, em média, três mil habitantes. Chegara ao lugarejo há cinquenta e três anos, quieto, gentil, acolhedor, a roupa do corpo. Os moradores dos começos, uns trinta, confiaram nele e lhe deram a chave do lugar. Os dias fluíam, naturais, progresso lento, coerente.  

 


Na tarde do natal de Santo Antônio, Guairacã achou curioso aqueles forasteiros de fala alcantilada, que se riam de tudo, a apreciar o ocaso que se desenhava por sobre o riacho. Parados, os três, junto à fonte da praça, transmitiam alegria e mansidão. Eram moços, vestidos de maneira simples, limpos, como um andarilho pode estar. Traziam sacos de viagem reduzidos, chapéu de abas largas. Contemplaram a beleza até a primeira estrela surgir e então cantaram juntos

 

Companheiro me ajude
que eu não posso cantar só
Sozinho eu canto bem
com vancê  canto mió

 

Zé da viola foi o primeiro a se chegar. Achou os acordes facilmente e passou a pontear cada improviso que nascia após o refrão, alternado entre os três moços. Logo se juntou um triângulo, uma zabumba e algum oferecido, que punha verso, completava. Guairacã deixou que os pirilampos iniciassem sua dança. Era noite de lua nova, vento ameno. Antes do ajuntamento se animar em demasia, o guarda-chave veio como quem apazigua e ofereceu abrigo. Antônio até que apreciaria mais folguedo, porém era preciso assuntar, sentir a que vieram os viajantes. Regra, com viajante, era sagrada, eles dentro da ética do lugar, se não, era andar.

 

 

sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

Contos de Malhas e Mourarias 12




Tudo que nasce tem fim... e recomeço

 

 

Os dias mais bonitos apareciam anotados, frases curtas, palavras indicativas, algum fato, alguma emoção. Para deixar exemplos, no dia 9 de janeiro, a caderneta preta menciona faz seis meses que Zezito partiu. Já no dia 2 de fevereiro estavam belas as bandeirinhas no Largo do Chafariz de Dentro. No mesmo dia uma lufada suspendeu a barra do vestido e estive meio nua para todos. Na noite daquele dia escutar a Sofia Ramos deu-me dor. No dia 15 de março faz-me falta o pinicadinho dos pés sobre o assoalho. No 16 li no obituário que Aní vaga pelos arredores, alguém a viu adentrar à Ponte, mais perdida que eu.

 

Não sabemos se mentira visitou a infância de Fátima, e poderíamos ser prestimosos com ela, explicar as fantasias de criança, sua prodigalidade em aumentar pontos em histórias com muito nexo, o que pode causar confusão ao cotidiano. Por esta razão se recomenda, que tu dês ao filho uma caixa de lápis, bem cedo. Há uma chance de nascer, deste encontro com o grafite, acrescida uma pitada de amor familial, um bom comunicador. Em aquele preciso instante, diante das ladainhas sombrias de Mariano Lole, Fátima se deu conta de algo seu.

 

Mariinha Donis, ex acompanhante para homens com alguma graduação, deu a Cristino Santana a informação de que ele precisava e também seu cartão de visitas, amarelo maré. O homem, saído de um auto com chofer, conduzia uma senhora magérrima, um tanto maltrapilha e transtornada. A dama fora encontrada a perambular, a meio da Ponte 25 de Abril. Chorava e pedia por uma Carmén. O chofer, acostumado a casos de ideação suicida e outras mazelas de trânsito, inclusive o transporte de gente morta, se opusera a parar, inda mais em uma ponte. Sem perder a elegância, Cristino só disse e se fora a tua mãe, a voz suave e hipnótica, que não permitiu réplica. Bastou, para um resgate relâmpago, quase um rapto. A mulher debateu-se por algum tempo. Rendida pelo cansaço, frio, fome e medo, pode então balbuciar, vivia em Alfama do Mar, perto de uma casa que fabricava travesseiros açucarados. Depois de repetir Carmén várias vezes, foi vencida pelo sono. O chofer, ainda amolado com a situação, terminou por apiedar-se. Entendeu que seu cliente identificara na senhora uma avó, a mãe, uma parenta. Seguiu então em direção ao Largo do Chafariz de Dentro ou qualquer lugar, no perímetro, onde fosse permitido acostar o auto. Era temporada de turistas aos borbotões. 

 

Cristino teve alguma dificuldade para despertar a senhora, já nas proximidades do Museu do Fado. Aní assustou-se, mantinha-se atônita. Ainda mais insinuante, o homem terno propôs a ela caminharem devagar, até onde estava Carmén. Antes, quem sabe, um prato de sardinhas e batatas, uma ginjinha. Tocada nas fibras mais profundas, Aní foi saindo do autocarro com certo desprendimento, ir com um homem bem apessoado fez-lhe bem. Além da gorjeta, Cristino deixou um pouco mais de euros, para que o chofer higienizasse o interior do veículo e não tivesse prejuízos com a futura clientela. Vencidos muitos lances de escada, foi Mariinha quem abreviou a aflição de Anunciación. Apontou, galanteadora, a Pão Nosso d’Alfama de onde, naquele exato momento, Fátima saia a braço com Helena achada de Troia.

 

Como aumentar em um só ponto os Contos de Malhas e Mourarias? Se havia tanto encontro e desencontro para ajustar? Mesmo que o cenário mude, vá dar ao interior de um país filho do progresso, ainda se poderá saber do desenvolvimento destes informes pueris, lembranças de caderneta preta. Dos gatos de Fátima, ainda não se tem notícias. Entrou por uma porta, saiu por outra, D. Anfonso X e sua corte poético-musical que nos conte outra.