sábado, 25 de outubro de 2025

Guairacã 10





10 – Rosário de Lulé

 

O trabalho de um contador de histórias é como um calango sob o vaso de plantas. Observa, tem ao lado uma caderneta e espera novos pedaços de batata crua e ovos, a cair em sua boca como que por encanto. Um carinho na cabeça também serve. Desde que o barulho da roçadeira se restrinja ao jardim, o animal segue imóvel, inerte, frio. O mesmo ocorre se a moça triste surge do nada, senta ao seu lado e assume a mesma imersão. O contador de histórias suspira, relê as páginas e dá com a mão esquerda na testa. 

 

O contador de histórias gesta seus personagens das funduras dos olhares. Podem ser os seus, refletidos em cacos, o que é mais comum, ou as extraordinárias expressões das retinas vizinhas, disponíveis a quem faz contatos visuais verdadeiros. Para algum leitor, pode ter chamado a atenção nascerem, para esta narrativa, os doutos Juvenal e Gaudêncio. Rapazes dedicados aos estudos, estavam à cata de cordelistas que dariam tom a sua tese. Ao entrarem na Pousada do Riacho Guairacã viu, nas pupilas dilatadas deles, dois lavreiros de narval, Otaviano e Álvaro, portugueses do Algarve, com quem lidara nos mares do norte. Aqueles tempos de pesca e perigo, Guairacã tinha o cuidado de os afugentar do pensamento. Sempre que se dirigia aos sulistas, o bandeirante precisava corrigir a saudação e prometia, toda vez, contar-lhes seus arroubos de Júlio Verne.

 

Ao perseguir o olhar daquele personagem, o que entra em cena e muda todo o curso dos acontecimentos, o contador de histórias sofre. Ele poderia dizer que a comunidade ribeira ainda não permitiu acender esta luz. Por ora, era ir apresentando este ou aquele sujeito, mais ou menos afortunado, mais ou menos fadado, mais ou menos enredado na trama. Se fosse dom, o premiado alumiaria a página. 

 

Fátima, a lisboeta, trouxe na bagagem livros e notícias para Guairacã. Tratava-se de um compilado de poemas obituários, em três volumes, escritos pelo finado Mariano Lole, para um folhetim da capital. Outra amizade antiga, dos tempos em que Guairacã fazia seu desjejum em uma pensão, a Flor dos Cavalheiros, na cidade de Lisboa. Foi lá que o velho bandeirante testemunhou o enfarte de um homem, diante da xícara de café. Viu também o prestimoso socorro, prestado por Lole à vítima. Naquele mesmo dia, Guairacã tomaria um navio para o Brasil. Não mais perdeu o contato com aquele poeta estranho, amável e um tanto sinistro. Até perder.

 

Descansa em paz a minh’alma

Nas espumas de Portimão

Afortunada, mar de manto

consolou meu coração

 

Santinha das minhas chagas

Montada em um burrico

Eu te vi, praia distante

Vou para ti; aguarda 

 

A irmã Letícia, pela manhã que raiava no Riacho, puxou o rosário. Não era seu costume, preferia sussurrar à Mãe seus pensamentos de menina, enquanto Juanita impunha ritmo às contas. Arrependia-se, por ter deixado o mundo para trás duas vezes. A família, na casinha de Jericoacoara, foi seu primeiro adeus. Montada em um burrico, adornada por uma mantilha azul que lhe cobria os cabelos, quis o encontro com a luz, que vira mais para sul. Para os pais, uma santinha. A mente pregara-lhe alguma peça. No caminho para esta luz, desenvolveu episódios epiléticos leves, invariavelmente socorridos por passantes amáveis. Por conta da aparência, era ao padre da localidade que a levavam. Assim é que a menina, pelos dezoito anos, acabou internada em um convento, onde encontrou Juanita e Magda. No derradeiro episódio que sofreu, Letícia rezava as vésperas, entre suas inseparáveis companheiras de cela e fé. As noviças tiveram permissão da abadessa para acompanhar a doente ao centro médico, ala psiquiátrica. 

 

Em revolucionária atitude, já recuperada a irmã Letícia, Magda propôs que as três não voltassem mais à reclusão. Destemida, missioneira por vocação, Magda sonhava a oportunidade de servir em alguma comunidade ribeira, tratar de gente, precisada de sutura, cataplasmas e um pouco de religiosidade. Embora o dinheiro que tinham, pouco, fosse do convento, consideraram usa-lo para bilhetes de viagem, somente de ida. Eis o segundo adeus. Foi então que Letícia conheceu Juvenal, no pronto socorro da psiquiatria.

 

quinta-feira, 2 de outubro de 2025

Guairacã 9






Fósseis, fácies

 

 

Estava mais para pista que para fóssil. O sapato de cano alto guardava dentro o esqueleto de um pé masculino. Não havia para que supor. Talvez eles fossem, mesmo, paleontólogos de meia tigela. Sem esmorecer, Aurélio deixou a imaginação aproximar um teiuguaçu de uns dois metros, dentes pequenos e pontiagudos. Quem sabe escassez, talvez raiva, a criatura partira a perna do adversário na altura do calcanhar. Esses homens arrogantes, tomou o merecido. O sapato, datado pelo caminho da arcada, muito uniforme, coisa de cento e cinquenta anos da ocorrência, pediu alguma intenção póstuma. O rapaz resmungou por longo tempo com o artefato nas mãos. Na pesquisa atual da equipe, sem insumo do PROASNE[1], não havia necessidade de respostas, sequer perguntas, não haveriam de prestar contas sobre seus triunfos ou fracassos, tampouco havia público sádico a querer denegrir sua reputação. Se fossem, os três, encontrados na mata do Riacho cento e cinquenta anos adiante, somente três pés de sapatos e três restos de esqueleto, pouco se diria a respeito. Ou nada. A aparente liberdade do dever lhes permitia voos criativos. O ideal, primeiro, preservar todos os tipos de vida, garantir a vida da água no planeta. A consonância entre vítima, vilão e aquífero subterrâneo viria, o tempo era amigo.

Aurélio deixou o achado sobre a escrivaninha, devidamente acondicionado, também os dois colegas, em sono profundo, e saiu para o corredor. Os moradores, dali a pouco, concluiriam a sesta. Tudo bem quieto, exceto pela chuva grande a escorrer dos telheiros. 

Sentada ao lado do vaso de plantas, Adele espiava Gilseu com sutil encantamento. Já vira lagartos antes, mas aquele tom de verde da pele do animal a deixava perplexa. O que mais a chamou foram os olhos. Como afirmar a ausência de sentimentos? A moça verdadeiramente esperou que o animal falasse com ela. Queria respostas para um milhão de perguntas, todas inúteis, mais os dias se empilhavam uns sobre os outros. Aurélio poupou a mulher de mais um turbilhão, sem o saber. A forma como ela implorou companhia, um único piscar, fez Gilseu mover-se para a cozinha, a tomar ares, não tinha intenção de  testemunhar ato algum. Invisível, feito camaleão, o animal mergulhou pelas escadas e logo estava ao pé de Guairacã, que lhe coçou a cabecinha e o deixou em paz, não sem antes ganhar um ovo inteiro, oferecido em plena boca. 

 

Os primeiros movimentos da pousada, livres do dilúvio de fora, foram tímidos e se limitaram à sala, onde havia mesa posta para sucos e biscoitos. Jica deixara, sobre um console, um baralho, uma caixa de gamão e outra com um quebra-cabeças antigo. Havia superfícies para armar os três jogos. 

 

Embora amuado, Aurélio aceitou se juntar aos colegas para uma tertúlia. O violão grave de Eurico deu ao trio base vigorosa, que lhes permitiu várias improvisações. Naquele final de tarde, a valsa canção pareceu a melhor forma a soar, transcendia o mero entretenimento. Gaudêncio e Juvenal, afeitos ao bailado, dançaram primeiro com Jica. Fátima, sutil em suas nostalgias, logo revelou um modo de pinicar os pés no assoalho que, se se podia dizer assim, tocou fogo ao coração do velho estalajadeiro. Guairacã se pôs a valsar com o grupo, alegre como há muito não se via. Não demorou muito para que as freiras parassem de enxergar demônios onde havia elementais satisfeitos. Por intermédio delas, uma roda se formou e quase se esqueceram do jantar. Os pares se alternavam no centro da roda, acompanhados por palmas e caloroso incentivo. 

 

Acostumada aos movimentos de domingo na casa, Jica havia adiantado um belo caldo de peixe, que combinou servir pelas vinte horas. Nenhum conviva ousou tirar uma freira ao centro, o tabu cantava mais alto; as moças se contentaram com os volteios em seus lugares na roda. Nenhum conviva insistiu para que Adele se juntasse a eles.

 

Após o jantar, todos participaram das arrumações da cozinha e da sala,  Jica e Fátima agradecidas, por poderem desfrutar do final do arroz de leite. O grupo estava convicto de que a hospitalidade da Pausada do Riacho excedia as expectativas. Por um lado, isso era bom para o espírito das trilhas. Por outro, poderia dificultar o desapego. Os dias, fluidos, incitavam o convite da partida. A nenhum dos hóspedes Guairacã aplicara a lei, que consistia em receber o estrangeiro, o diferente, o novo, oferecer-lhe comida, bebida, banho, abrigo, sem nada perguntar até que se vissem saciadas as  necessidades. No dia seguinte, caberia perguntar a cada um, a que veio. Disso dependia a saúde do Riacho.


De pé de orelha, com Zé Tônico

Conto meu causo, (lhe) peço instrução

O burro, manso, meu velho amigo

Convida à vila, no Bom Rincão



[1] Projeto Água Subterrânea para o Nordeste do Brasil

quinta-feira, 21 de agosto de 2025

Guairacã 8

 







8 – Compromisso

 

 

No episódio anterior, deixamos dona Fátima, a lisboeta, mais a Jica Lisberta aboletadas com panelas, chaleiras e arroz de leite. Quem se chegou a elas, pouco antes do almoço amansar, foi Eurico paleontólogo. Não, não tinha fome, um suco de seriguela caiu bem. Naquele léu e créu da pousada, ele ficara por redigir as anotações de campo. Trazia consigo, dentre outros objetos, um pé de sapato dentro de um saco plástico, a ficha de identificação no sobrescrito. Uma papelama, presa por barbante, um caderno de espiral laranja, um lápis apontado a canivete, um lado azul, outro vermelho.  O moço, mais do baixolão que da Pangaia, sonhava algo inusitado. Sabia da riqueza que catalogavam, o quão úteis eram as descobertas que teciam. Uma paixão secreta, a cantiga portuguesa. Sentou-se no batente da cozinha que dava para o quintal, sem cerimonia. Sacou do pinho, que buscara na estação de trem naquela manhã. Colado ao peito, de tão grave, o baixolão lhe deu um ar borracho. Eurico, muito belo com seu nariz adunco e sotaque desconhecido, sussurrou, a voz pequena. 


Ao sair de "dei" perdi um dedal,

Com letras que dizem: "viva Portugal"

Viva Portugal! Viva Portugal!

Ao sair de "dei" perdi um dedal!

 


Fátima, olhos compridos, talvez lampeiros, ecoou a quadra. Jica, a linha estirada, anzol engatado no xaréu, seguiu de colher a girar o arroz, estava tudo quase no ponto de servir. Gostou na hora daquela cantoria e achou bom que não fosse o Jordano paleontólogo, havia de enciumar. Sem descuidar do ofício novo, a contracantar, Fátima foi à copa, enfeitou a mesa com um pequeno arranjo de mãe-de-milhares. Alinhou pratos, copos, guardanapos sobre toalha de bilro. Jica veio logo atrás, a empunhar panela de barro fumegante. Para beber, havia água do poço duas vezes ferventada, suco de graviola e leite, também de seriguela. 


Os outros hóspedes foram lavar as mãos, primeiro as freiras, depois o moço ex detento, depois os acadêmicos do sul, depois Garnizé. Veio um casal da vila filar a boia, famosa na região, bodas de prata deles. Com o restaurante de vinte talheres, Guairacã podia pagar ordenado de gente a Jica. O estalajadeiro ia anotando, no quadro de giz que dispunha na calçada, quantos convivas estariam naquela tarde. Quando chegava o vinte, refeição somente no dia vindouro. Jica guardou as porções, generosas, para Aurélio e Jordano, que se demoravam nas andarilhações.

 

O aroma da refeição, os ecos da cantiga. Gente reunida, sem saber ainda o que une, atrai. Sagrado. Algo de bom há em mesa posta, em encontro entre sotaques lngínquos. No ar, na madeira aplainada, nos pregos que mantém a mesa ereta, no centro da sala, cheiro de chuva por cair, acre. Sagrado. O sangue a correr pelas veias, um rugido interno a anunciar apetite e vontade, gemido livre nas vias úmidas de fruta colhida no pé. Sagrado. Não era devaneio de ninguém que aquele acordo coletivo tomaria ares de celebração. Hospedaria tinha seus encantos que, em geral, duravam o tempo da estada. Ali, um suspiro de futuros se via, no vão de flecha envenenada. Sagrado. Quieta no seu canto, dona Fátima espiava cada rosto, cada ai após uma garfada. Jica conhecia o estômago humano. As duas cederam, de bom grado, lugar aos dois meninos da Jeruza, foi saberem do arroz de leite e viraram em dois cabritinhos até a mãe deixar almoçar no seu Guairacã. Ninguém queria as lombrigas atacadas. 

 

Quem primeiro puxou prosa foi Juvenal, professor de literatura comparada nível um. Foi direto ao ponto e perguntou sobre um autor recomendável de cordel na região. Um silêncio perfilado e logo dois nomes vieram, Patativa do Assaré e Ariano Suassuna. A Jica lembrou-se de Bráulio Bessa. Anônimos, moradores do Riacho, pelo menos cinquenta cordelistas, entre solteiros, casados, dos que moldavam seu próprio papel, foi a Jica quem informou também. A pergunta, feita por Otaviano, vinha não de não conhecer o material, mas em atenção aos leitores, o objeto da pesquisa. Otaviano tinha em mente entrevista semi estruturada, jogava o verde para colher maduro e um pouco para se mostrar. O colega, Gaudêncio, torceu o nariz. 

 

Os seres das águas não se rendem, arrumam seu jeito de exigir atenção. Uma tormenta assombrava o início daquela tarde. Poderia intentar a mata e sair de fininho, sem ruído. Era esperar. As freiras, que se alimentaram feito passarinhos e não provaram o arroz de leite passaram, agarradas uma a outra, diante do baixolão encostado à parede, na cozinha. Tiveram curiosidade, pelo som, pelo instrumentista. Eurico, ainda a saborear a sobremesa, olhou aquelas meninas e sentiu frêmitos de tocar para elas. 

 

Sentadinho na sua cadeira ao lado do fogão, Guairacã fingia dormir. Algo de dengoso, em meio ao vento forte subia, desenhava o delta. A chuva, nada de cair. Na garganta, o caminho das frutas. 


A água pura deu satisfação ao trato digestório de Aurélio, cismado diante do sapato e da bica. Tão velho aquele artefato, como as terras daquela terra. Outras satisfações, tão poucas, tão fundamentais e urgentes o faziam pensativo: e aquela moça tão pálida, a vestir preto naquele rincão? Qual história haveria de imaginar? Qual um dois três e o gato, telhado, janela, legião estrangeira? As pedras, caixa e servidão? 

 

Guairacã, suspenso entre a terra e o raio, pensava no que fazia, afinal, aquele bando de bandeirantes, acolhidos junto à cachoeira. Onde a Paraíba? As freiras? A mulher obesa de Lisboa, os profissionais? A moça de preto? O réu inconfesso? O dono do catajeca? A Jica, o Jordano das cordas agudas? Qual um dois três e o Gilseu, lagarto imóvel sob o vaso de que planta? Sagrado. Algo de bom há de haver em cada abrir de invernada, micro ônibus encostado na calçada, tarde ensombrecida, um arquivo onde se vê notas em azul, monossílabos e hipérboles. Até onde se vai nas escavações ? Até onde se chega, na certeza da psique mensageira? No amor que não vinga, na empatia corda-bamba? Saberia um dia, o velho bandeirante? Até onde o respeito aos fósseis? A quem interessar possa? Qual testemunho, exemplo? Sim, a tarde não chovia, era sexta-feira de arroz de leite, ou será domingo, o tempo não pararia, calma, turvo, cultivado no ranger da cadeira, no soprar teso, no cheiro de café a esturricar no coador. Guairacã agradeceu o compromisso com a pousada, rincão lembrado de Deus. 

 

coração, rio

verso vertiginoso

o olho adamastor

 

coração, rio 

Fonte da Corredoura

segue seu curso de amor

 

segunda-feira, 21 de julho de 2025

Guairacã 7



7 – Joia das joias

 

 

Já passava das oito, manhã friinha, primeiro dia de inverno. No ar, a umidade de uma chuva esperançosa, o sol tímido a abraçar de luz as árvores e os pássaros. Um casal de anambé-de-asa-branca, atarefado, colhia frutas na mata de tabuleiro. A comprovação de que a espécie era essa, a lisboeta tinha no cordel de viagem que lhe vendeu o condutor do ônibus, o senhor Garnizé. As frutas, amarronzadas, levadas no bico aos filhotinhos, postos em ninho simples, nos galhos, não muito longe da cachoeira, de ingazeira se pareciam. Um zumbido curioso se ouvia, a cada voo do casal, quase hipnótico. Assim, a senhora portuguesa deu luz aos pensamentos, despertou.  Um morador fazia tinir seu martelo, várias casas além da pousada. Há muito que os humanos deixaram de guardar domingo, Fátima refletiu, diante da janela de seu quarto. Sentiu uma saudade injustificável do marido, o finado José. Haveria gatos, haveria livros de Inês Pedrosa ou Lydia Jorge naquele fim de mundo? Quem conheceria Miguel Torga naqueles confins? Pois, se deixara Lisboa para redimir-se, por que tanta falta lhe fazia? O Tejo. O Rosário. A Igreja de Santo Antônio. A enfermeira Matilde.  E agora, a mata de tabuleiro.

 

excursão, com que Fátima viera desde Pitimbu, havia saído para conhecer o vilarejo, inclusive as três noviças, grudadas umas às outras. Felizmente, não havia obrigação de estarem juntos os passageiros. A senhora se mantivera muda e calada, a olhar pela janela durante a viagem, parecendo mais distante que em alto mar. Sorriu para as meninas rezadeiras vária vez, não passou desse cumprimento. Sua experiência com os homens portugueses não lhe devolveu a jovialidade após o luto, ao contrário, mais retraída se encontrava. Dos da nova terra, somente o estalajadeiro lhe chamou a ver e, mesmo assim, com reserva. Ah, o rapaz com o violão contra o peito, o que cantava temas pastoris. Nem de longe, a senhora fazia papel de viúva inocente, não lhe convinha. Há que se pensar, cedo para escancarar a alma de um personagem, precoce, desleal atitude, da parte deste que lhe escreve. Deixemos madurar, espontaneamente.  Mergulhada nas suas doçuras, a lisboeta voltou-se para o interior da alcova, foi até a  maleta e retirou dela um velho vestido laranja, com margaridinhas, curto, decotado em demasia e meio transparente. Nem sabia que o havia colocado na bagagem. Vestiu-o assim mesmo, embora as inconveniências. A simplicidade daria conta do que Fátima pretendia fazer do tempo, ao menos naquele domingo. Ao olhar a Jica antes, toda atarantada com os petiscos do café, perguntou se poderia ajudar com o almoço. Jica, sem se fazer de rogada, confiou na mulher que lhe estendia mãos pequenas, gordinhas, e também uma amizade duradoura. Andava precisada de atenção, a faz tudo do velho Guairacã. 

 

Imprudente. Foi assim que Jica cantou, sobre a panela do feijão verde, ao ver Fátima adentrar seu santuário. Com a rapidez que não tinha, a faz tudo estendeu à senhora um desses aventais que cobrem frente e traseiro, à maneira das cuidadoras de creche. O azul marinho ornou com o laranja e apresentou melhor alguém que pretendia servir pudicamente. Passe mágico, logo as duas mulheres se irmanaram nos cortes da macaxeira, sem derrubar uma sequer, no levantar a chaleira enorme e fervente, no sal, no queijo coalho, cebola e coentro. Arrumadinho, o prato que Jica escolheu para a mesa daquela tarde, em que os convivas voltariam da caminhada famintos. Arroz de leite, para dar o doce ao entardecer, foi a sugestão de Fátima. 

 

Papel engavetado 

ciberespaços 

prateleiras 

de antigas livrarias

 

 

Algum índio despido

Tibira, um arpejo

Vestido alaranjado

canto canoeiro

 

sábado, 21 de junho de 2025

Guairacã 6





Algo sobre a prisão inocente

 

Não se trata de história oral, que seria preciso expressa-la diante do rosto de alguém. Também não é um cordel, ilustrado com as figuras do cangaço, a caatinga, o mandacaru, o areal sem fim e a variante dos calangos sertanejos, a tomar sol sobre os pedrelhos, um fluxo gracioso entretecido de bilro. Talvez seja história de um dia, umas horas de encontro, ocorrido diante de um fogão a gás, pia de pedra preta sobre base de alumínio e madeira, mesa velha de compensado, cadeiras bambas, toalha de flor, uma confusão de papéis, dois violões de afinação criativa, cravelhas rodadas com certa fúria, as cordas retesadas em certas notas que não figuram em alfarrábios, cantigas de um lugar por escutar, memorizar, estas oriundas do extremo oposto ao catingal, onde o minuano uiva. Entre os papéis, pratos, copos, garrafas, biscoitos recheados de goiabada, erva de matear, vinho, bilha, ingredientes de refeição, temperos, água quente, oliva, páprica, cominho, sal, orégano, alecrim do pé, batatas, um amor de milênios.

 

E ele pisou o assoalho amadeirado, o peso da mocidade a despregar-se dos vidrilhos de um lenço amarrado ao pescoço, o pó das botinas a branquear os vãos. Depois, se verá que há ali, sob aquele pano bordado de pequenos espelhos, um vergão perigoso, ainda arrouxeado. Um relógio antigo, pouco acima da cabeça do velho Guairacã, marcava sete e meia. O estalajadeiro tinha o rosto tranquilo, a novidade chegava à Pousada do Riacho em penca naquele dia, o catajeca de Garnizé calhava bem. Não surpreendeu-lhe aquele rapaz triste, que perfumou o ambiente, fino porte, tez cansada. O que chamou a atenção foi, mesmo, o lenço. Uma tensão súbita, nascida de memórias rústicas, encheu o peito do bandeirante. Cumprimentou o hóspede, sem fazer contato visual mais significativo.

 

Será, este capítulo, parte da saga dos moradores do Riacho, um episódio insólito. Talvez, somente interesse à ameiva sob o vaso, o Gilseu, aquele arremedo de calango, habitante da pousada que, naquele dia, viu brilhar não o lenço, porém um corte de batata inglesa, que rolou das mãos da Jica diante de seus olhinhos sonolentos e foi-lhe surrupiado, pelo moço dos vidrilhos, com um atraso imperdoável de vinte segundos, a contar da queda até o momento da incorporação ao guisado, ai, a tola Jica e seu jeito trapalhão. Gilseu nunca saberia, se se tratava de manjar ou pedra preciosa o que viu. Só soube que brilhava. Quanto a Jica, o gemido que deu, Xairo Mariam, disse muito. 

 

Passado o difuso tempo entre olhar a Magda - até onde se sabe, noviça da Congregação Franciscana, terceira ordem Seráfica -, enquanto o catajeca sacolejava na estrada, e o juntar o pedaço cru da batata na cozinha, uma sensação de segurança nova. O rapaz do lenço de vidrilhos estabilizou o próprio tino, recostou-se ao balcão da recepção e deu com tecido leve, branco empoeirado, o fio que contornava a cintura e descia, balançoso e cúmplice. A menina era um candeeiro de metro e meio, uma Sant’Ana ao redor do mundo. Jorge paraibano não cabia em si, o aperto no pescoço não lhe deixava ir muito longe no encantar-se. Então, pareceu um relâmpago. Seria ilusão, ou era mesmo ameiva aquele ser, imóvel sob o vaso do corredor? A partir daquela distração fugaz, o ex detento fez do réptil uma chave. Se não sabia rezar, sabia identificar sinais. Xairo, Mariam.  Gilseu, a ameiva, se tornaria, breve, um camarada de falar sem falar, a quietude que todo homem possui dentro. 

 

Bom dia, azuis nos cinzentos do dia. Assim desenhou-se o sorriso tímido no rosto daquele dono de pousada, o Guairacã, aos excursionistas. Na lerdeza de um canto de mundo onde a natureza era mãe, a cachoeira chorava, as papeletas de identificação iam passando de mão em mão. Uns preencheram a ficha no balcão, outros usaram a mesa de refeições. Jica seguia com sua feitura do desjejum, atrapalhada com a presença do Jordano, o paleontólogo que tocava violão, debruçado à mesa da cozinha. Mais um quarto de hora se passou até que o grupo fosse encaminhado a seus respectivos aposentos, pela mesma Jica que compunha a refeição. Ficou combinado, às nove horas desceriam para merendar. Assim como os paleontólogos na véspera, os homens foram refrescar-se na bica de fora da casa. As mulheres, mais respeitosas entre si pela presença das noviças, aguardaram a vez na bica da casa de banho, esta suficientemente organizada para acomodá-las juntas, com alguma privacidade. 

 

Jica tratou de dividir os hóspedes. As noviças ficaram com a janela de frente para o riacho. Jorge aceitou dividir espaço com os dois universitários; da janela deles também se podia ver parte da queda d’água. Fátima, a lisboeta, ficou com o espaço que acomodava um casal, no segundo piso. Acostumada que era a muitos lances de escada, não reclamou dos doze degraus que deveria subir. Adele, que naquele reduto não seria conhecida como narcótica acolheu, quase que com gratidão, o mirante. Por último, o condutor Garnizé ficou bem instalado na cama do velho Guairacã. O bandeirante preferia dormir ao relento, como já foi contado, ou em um cadeirão perto do fogo, na cozinha. 

 

Um amigo disse uma vez: está nublado, mas o sol desperta ali, só se cobriu com o poncho. Guairacã piscou os olhos no momento em que o vidrilho refletiu o azul do céu. Verdade e consciência andam muito unidas nessa condição, o velho resmungou de si para si. A consciência não engana. Pode-se cobrir ela com outro poncho, até molhado. A verdade mora no conjugado, desvão da consciência.  A verdade difere da convicção. É o correto assentado, o bem proceder que repousa sob a forte camada de nuvem. Xairo, Mariam. Um alivio, toda vez que desagua. Jorge limitou-se a escutar o burburinho das vozes, suspirou ao ouvir a prece murmurada pelas noviças. O rapaz foi deixado em paz com sua nostalgia. Os moços estudados, que lhe fariam companhia no quarto, mostraram-se disponíveis para trocas amistosas. Deram-se as mãos Juvenal, Gaudêncio e Jorge. O mate esperaria, ainda mais dois dias. 

 

Ia virar a maçaneta Fátima, a lisboeta, quando Jordano Guerra, saído da cozinha, de violão contra o peito, rondou o corredor. Aquela senhora era tão familiar que o moço piscou quatro vezes até se dar conta. 

 

Caso os leitores habituais perguntem e aquele algo, sobre a prisão de Jorge no Farol do Cabo Branco, como o rapaz se juntou à excursão, de lenço ao pescoço, a esconder um vergão roxo, terão de esperar mais algum tempo para obter elucidações. Xairo, Mariam.

 

Dentes de pecari tajacu 

Gramínea e maricão

Silêncios, algum trovão

 

De palco em palco

De drama e pantomima

O coração batido

acende o lampião







quarta-feira, 21 de maio de 2025

Guairacã 5









Algo sobre Juanita  e a Pousada do Riacho

 

 

Juanita havia entrado antes de Letícia e Magda para a ordem. O pai a obrigara, para esconder sob o hábito uma gravidez indesejada. A moça tinha quatorze anos na ocasião. Filha caçula de estancieiros, serena e linda como os jacintos, quase não falava, a não ser com seres invisíveis. A mãe morrera no parto, de cansaço. Em dado instante, Juanita dobrava os joelhos onde estivesse, estendia os braços para o céu e claudicava textos longos, prolixos, que lembravam a São João da Cruz. Fora assim desde os três anos de idade. Chorava, chorava toda uma cascata de luz. Levava guampadas do pai, para que não bancasse a louca e o matasse de vergonha. Dessas preces, a menina se levantava e ia bater roupas no rio, sua função principal na casa com dez irmãos, todos homens. Como foi que embarrigou, ficará para outra ocasião saber. Fato é que chegou ao convento apavorada, com cerca de doze semanas. A Abadessa a recebeu pessoalmente no portão e logo a encaminhou a uma clausura sem janelas, no terceiro andar, sem que a moça visse ou ouvisse algo além de um longo corredor vazio e seis lances de dezessete degraus. O cubículo onde ficou por três dias tinha um colchão úmido a um canto, uma lâmpada de baixa amperagem que oscilava do teto. Dar com o balanço leve do fio foi um consolo, para alguém que precisava de ar. Havia uma abertura na parte de cima da porta, por onde passava um frio que mais jorrava carícia de santo. Ao escutar a chave correr no ferrolho, dobrou os joelhos. De seus lábios, com formato de botão de rosa, brotou o seguinte alento: Jesus era inocente. E o francês católico, ao ouvir isso, encaminhou-se para a guilhotina, confortado. Hoje é terça-feira, 20 de maio. A nona hora do dia está completa. Não longe desta clausura, o sol sorri. Amigos queridos, de todos os quadrantes do Universo, Paz. Sou mais humana do que imagino e este sentir não é nada confortável, a menos que eu me apoie na frase que inaugura meu calvário. Jesus era inocente. Gostaria de cantar sou cristã, cheia de amor e estrelinhas. É muito oscilante o sentimento. O meu lado racional é carrancudo à beça quanto a isso. Entendo, Jesus era inocente. Ontem também se disse: a ciência perdeu a razão. Então não sei, Amigos, o que será. Sei de agora. A paz está no meu peito. Sou capaz de praticar os silêncios das madrugadas.  Bendita a senhora de branco que me guardou aqui. Não é caso de guilhotina para mim, acho. Talvez abandono, em meio a madeiras, cal e frio. Apontar os fascistas, fariseus, comandos vermelhos, gangues terroristas, guerrilheiros, reacionários, latifundiários, bandidos de toda ordem, fácil. São referências também, quase que identificações. Ontem, o pensamento que veio apontava para andar de carruagem, sem merecer, que isso atrai ladrões. Faz sentido? Amigos, Jesus era inocente. Sei que tudo o que eu disser será usado contra mim no tribunal. Assim foi também com o Cristo. Havia nas falas d’Ele uma integridade, uma magnanimidade que está longe daqui. Jesus manteve o coração com o Pai, aceitou a prova e foi para o cadafalso, entre dois ladrões. Minha companhia, neste momento, são os Amigos. Não quero me impor cilícios ou torturas mais graves. Quero a sorte de um amor tranquilo. E não será com um parceiro de rio que terei isso. Também não quero saber a quantos abandonei, traí em outras existências. Penso que passamos muito da História em guerra, pelo nome de Jesus inclusive e que é justo pagar o que é devido. As provas contra mim apontam para estes fatores de risco, guerras, fora o autocídio, a maior das possibilidades, pelo que vivo neste momento. É provável que eu tenha desistido em cima da hora, quando a travessia estava quase integralmente cumprida. Sinto esta verdade bater, como se eu fora um rochedo sedimentar e a água do mar vergastasse, impiedosa e espumosa. Não me adianta cantar afasta de mim esse cálice. Penso no filho, sobre ele pedir a dor sobressalente da última moratória. Penso na mandíbula tensa com a qual ele articulou suas falas, este homem misterioso que saiu de um chapéu, do mundo de Alice, e quer renascer. Penso na bruxa Cubas, no significado de Misericórdia. Penso nas Princesas, as Patrícias e as Gigantes do Daomé. Penso nas escravas de Xerxes, em Ester. Nas colhedoras de cana. Em tantas, tantas mulheres, bendigo a todas. Penso nas garagens do Soweto e na impossibilidade de ter um carro. Não consigo chorar aqui, ficará úmido demais. Meu corpo trepida. Juanita tombou para frente, sobre a barriga, e um lago de sangue escorreu por baixo da porta.

 

Friinho, dia de marcenaria, de montagem de cenário para um auto a Maria de Nazaré, dia de provação e expiação. Dia de silêncio. Dia em que Juanita sofreu um aborto espontâneo. Dia de lixar paredes, ruído pouco. Um obstetra muito gentil veio, tratou da moça sob os olhos atentos da Abadessa, ali mesmo no cubículo. Ponto. Eu tenho problemas sérios com homens, mais ainda com mulheres, diria Juanita em confissão, dias depois daquele mar vermelho. Perdi o jeito com as crianças? Um menininho disse que não. Eu não vou falar de amor. Se me disserem que errei eu direi sim, eu sei. E não foi só um erro. Também pode ter sido um passo certo, para a Libertação. Vai-se saber. Jesus era inocente. Juanita dobrou os joelhos diante de sua confessora. Do que se trata toda  ilusão? Todo o percurso de uma jornada como a minha? Eu a quereria de outra forma? Sinceramente? Jesus, mesmo sabendo o passo a passo, parava para conversar com o Pai. Preciso me dar a este momento, com Ele, Jesus. Aguardo a chegada do parceiro de rio. Se eu pudesse pedir a Jesus, pediria o silêncio que me cabe, o silêncio meditativo, a serenidade respiratória. Pediria para que o nojo parasse, para que eu possa perdoar a mim, por ser inconsistente, incoerente. Gostei daquela ideia de que uma mente aturdida pode se curar da obsessão mais facilmente. Uma mente obnubilada talvez não resista, quando a separação é necessária, algo assim. Tenho grande preocupação. A Bá que cuidava da família, do pai, tão altiva no trabalho, enfrenta a luta contra um câncer. Eu sabia que havia essa possibilidade, dela estar doente. Pus a mão sobre o peito dela, rezei. As dores pararam. Agora que enfrento clausura, procurarei enviar-lhe fótons, toda vez que eu puder. Seu Ismael está na lide, no campo do pai. Peço que ele olhe pela Bá. Fui lá na estância falar com ele. É interessante, colocar nas pessoas o refrigério do qual necessitamos. Ele foi embora às dezesseis, um tanto afoito. Foi um dia difícil, para mim muito pesado. Fiquei na clausura por mais de uma hora após a saída do doutor. Eu imóvel, um pouco mergulhada em profunda melancolia, a vestir branco. Fui tentando falar com Ela, disse pra ‘Ela’ – Inteligência Suprema -  que a prova estava muito pesada, que eu estava trabalhando para aceitar o nada, o vazio, o imóvel. Mais para o final da estadia, atendi a um pedido estranho, por sacos de lixo e aspirador. Foi como voltar do Nirvana. Voltei ainda à clausura, suponho. Do lado de lá do muro, o serviço seguiu, o de enterrar os mortos. Pus os vasos que seu Ismael repatriou no lugar deles, as plantas sofrem, carecem poda para florir. Meditei minimamente sobre sanidade. Então alguém me chamou para ver. Pode ser que fiquemos mais um mês com este palco, alguém murmurou. Ou indefinidamente, vai-se saber. Eu espero tudo. Lembrei-me, muito, de um homem de cabelo branquinho, que falava comigo enquanto as roupas repousavam no quarador. O abandono não existe, dizia ele, um sorriso encantador. O doce homem também disse que o parceiro de rio se esforçou muito pra estar onde esteve, preferiria estar na casa dele. Que era para eu aceitar as coisas como são. Falou também de cantarmos, em algum momento, nas próximas vezes em que ele vier. Precisamos entender o que aconteceu, deixei a frase no ar. Sinceramente? Não sei se temos futuros. Dá a sensação de maturidade emocional e em seguida, destrambelha tudo. Eu também disse que esbarrei na cerca elétrica dele e pulei o muro, para o lado proibido dele. E agora? Ele precisa abrir o portão da cidade para eu sair. Faz sentido? Não sei explicar, mas experimentei um quase alívio ao fechar-se a porta da clausura, eu vestida de branco, como se eu tomasse posse do espaço que me emprestaram para viver. Creio, não vá esfriar tanto agora. Se o problema era frio, parece que foi resolvido, com certa classe, para eu me calar mesmo. Estou  assombrada, ainda, com a estrutura que se enjambrou. Se ontem falei sobre um raciocínio carrancudo, hoje direi que ele está em curto. Os sentimentos, escorreram com o sangue. Não estou somando lé com cré. Tempo instável, sem chuvas nesta quarta-feira, 21 de maio.

sexta-feira, 25 de abril de 2025

Guairacã 4





4 – gente que vai para o mar

 

 

Os paleontólogos ainda dormiam quando um ônibus muito antigo parou, há alguns metros da pousada. O sol mal despontara, um silêncio irmanado com o rolar das águas, nesse dia serenadas pela falta de chuvas. Uma ou outra ave madrugadeira noticiava as manchetes, seria dia quente e molengas. Um ou outro curioso abria fresta de porta, veneziana, a ver quem é que chegava por aquelas bandas, onde o bandeirante perdera as sandálias. Turistas em geral traziam riquezas, euforia, chamavam encontros de praça, cantoria e dança. Tomara, seu Guairacã permitisse um arrasta-pé ali no Rincão, há muito que não se bailava. 

 

Desembarcaram do catajeca nove viajores, que poderiam ter conexão entre si, se não de passado, de futuro. O primeiro foi Garnizé, o condutor. Sergipano sem pai ou mãe, criou-se na estrada a vender de um tudo, até ter dinheiro suficiente para comprar aquela cangalha, que dirigia há cerca de cinquenta anos. Garnizé encostava o carro nas rodoviárias, onde obtivera permissão para o fazer, e recebia passageiros assustadiços, no máximo dez adultos sem muita bagagem, que almejavam visitar ermos lugares, viver vida simples em excursão duvidosa. Garnizé permanecia com o grupo durante vinte e quatro dias e o devolvia à estação, todos saudáveis, satisfeitos e carregados de histórias com três páginas, desenhadas a nanquim. Os folders de passeios, que o motorista oferecia, vinham esboçados em literatura de cordel. Naquela manhã, o destino acertado foi a Pousada do Riacho. Era pegar ou largar.

 

A segunda figura, muito alta e magra, cabelo cortado a Chanel, roupas escuras, olhos contornados a cajal, unhas pintadas de preto, dedos repletos de anéis, coturnos, a narcótica Adele. Aqueles que leem os posts deste sitio hão de se lembrar dela, paciente psiquiátrica, internada em uma casa de idosos no litoral português. Não se trata, aqui, de reanimar queridos, como o fez magistralmente o José Mauro de Vasconcelos[1], mas é quase isso, talvez compaixão por uma existência tão desgraçada e patética, resumida a um desmanche de família sem adultério, ideações suicidas e um perder de vista de cartelas de Xanax, furtadas às enfermarias por onde passava. Nem a moça sabia ao certo sobre seu destino, que sentido tinha sua existência. Via-se que era jovem, sofrida, carregava imensa solidão. Nos últimos tempos, Adele fizera pacto consigo, de não assombrar mais ninguém. 

 

Três noviças da Congregação Franciscana, terceira ordem Seráfica. Delas, será falado mais adiante. Grudadas umas às outras, faziam lembras um cefalópode circense, antes de entrar em panela fervendo. Agora, era tratar de acomodá-las, o melhor possível, à vida fora da clausura. Ao vê-las, Garnizé as imaginou, a todas, suas esposas. Cuidava delas como se fora gatinhos miúdos. 

 

Uma senhora obesa, na casa dos cinquenta se supunha, dessas que perdem peso e tornam a engordar mais. Terninho Catalina e chapéu com uma pena espetada do lado direito, pele de porcelana antiga, sutilmente arcada, pés pequeninos. No momento, a senhora estava em fase esvaziada, trinta quilos a menos, olhar jovial, tudo nela arredondado e cheirando a glassê. Ela trazia consigo uma encomenda para o dono da pousada. 

 

Um ex detento, acusado de participar de um arrastão no Farol do Cabo Branco. Soube-se, um ano depois de seu encarceramento, que fora privado da liberdade injustamente. 

 

Dois palestrantes do curso livre de literatura. Pertenciam a renomada escola nacional. Vinham a procura de histórias de tradição oral para seus doutoramentos.

 

O grupo caminhou ordeiro e arrulhando entre si, menos as freiras, que rezavam as matutinas em silêncio. Garnizé tocou a sineta à porta da pousada e Jica não se demorou em abrir.

 

Ah, inigualável canto

Feito de esperas

De voleios efêmeros

 

De certo, testemunho mareado

Em preces entronizado

das fábulas Caetés



[1] Escritor brasileiro, autor de preciosidades como Meu pé de laranja lima, Rosinha minha canoa, Doidão.