quinta-feira, 27 de março de 2025

Guairacã 3




 Memória

 

Diante daquele fóssil, estranha opabinia mergulhada em formol, o velho Guairacã fez silêncio. O animal mais parecia drone submarino, pequena nave de outro mundo. Por instantes, o bandeirante entrou águas fundas, o mais fundo que deu. Só encontrou, nesse mergulho íntimo, gaiolas imensas, de prender narval, vazias; também uma força que lhe fugia dos ossos, do sangue, que lhe dera algumas botinas para caminhar, seguir mata adentro, mar afora. Para onde teria ido a primeira metade de sua existência, foi o que soube auferir. Trinta, quarenta anos, infância, juventude? Os paleontólogos lhe mostraram o achado logo após o jantar, deixaram que ele olhasse a peça até que fechassem a conta da hospedagem. 

 

Para afirmar-se bandeirante, Guairacã dispunha apenas dos instrumentos de garimpo muito rudimentares, além de um arco e flecha, que ele mantinha pendurados, na parede de entrada da Pousada do Riacho. Havia um saco de diamantes que ele nunca mostrara a ninguém, enterrado na parede, atrás de um primitivo óleo sobre tela onde posava a cachoeira. Para aquele que tocava as relíquias, uma plaquinha em madeira escavada, do lado direito da peça, a avisar cuidado, flecha envenenada.

 

Guairacã, depois de bebericar o chá de bardana, não escutou mais as vozes dos rapazes que contavam suas proezas, muita surpresa mata adentro, em busca de respostas do solo, das rochas. Parara diante da gaiola, o choro do filhote, a aproximação perigosa da mãe. Em sua face um ricto, de remorso. Não demorou muito, os três perceberam que o velho cochilava, perdera o interesse, assim entenderam. Despediram-se respeitosos e foram para o aposento que lhes coube. 

 

Jica pusera, sobre a escrivaninha, uma garrafa de chá digestivo, de efeito calmante, os rapazes dormiriam bem, mais um prato com bolachas de gengibre, feitas à mão. Foi ela também quem trouxe de volta o patrão, ele em pé atrás do balcão, olhos fechados. Com jeito amoroso, a faz tudo da Pousada tratou de levar o homem para cama, mais uma vez ele repousaria sem se banhar. Nessas condições de sonambúlico, o homem acabava indo pernoitar no quintal, em uma rede sob o jequitibá, sem tirar as botas. Pela madrugada, Jica sabia que haveria banho de cachoeira, então estava tudo bem. Ela conhecia esse costume de assuntar a cabeça, a procura de consolação, alguma saudade, amolação, desdita, que seu Gua num contava pruque tava caducanu já, caladão que só. Acostumado a ser conduzido daquele jeito, formalizado o seu estado senil, Guairacã deixou-se guiar. Assim que Jica fechou a porta, o homem pôs o casaco, endireitou-se e ainda pode olhar o sobrescrito do folhetim que chegara, com a posta restante da manhã. 

 

Eu olho a mata, o cipoal

Oiço cantiga, um pio doído

É meu lamento, corpo moído

Falta alimento no embornal

 

 

 

 

 

 

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