domingo, 21 de abril de 2024

Contos de malhas e mourarias 4


A. Magalhães


4 - Frivoleté

 

 

À  mesa da sala, onde se sentavam quatro, repousava o obituário. Também o livro Duas caveiras que se amavam, marcado à página trinta e dois, a certidão do passamento de José, um prato generoso de doces confeitados, agrado de Helena, a nova moradora da segunda janela da esquerda, de frente para o sobrado de Fátima. Uma taça de café brasileiro, um copo d’água, um maço contendo talvez vinte correspondências sem abrir, incluindo-se o telegrama, que veio há sei lá quantos dias, de Ponte de Sor. Um trilho de mesa branco, sem borda ou enfeite, servia como anteparo à madeira acinzentada. O sol das dez convidava a sair, sombrinha aberta, a ver o Tejo ali adiante.

 

Fátima trouxe consigo uma tigela com frutas e sentou-se. Duas luminárias quedavam acesas, pouco acima de seus cabelos, pareciam pirilampos em cenário peculiar. Quase que a viúva precisava de duas cadeiras para acomodar os quadris. De semblante melancólico e saudoso, logo apoiou a cabeça com o punho esquerdo, cotovelo fincado à janela. Trajava um vestido inapropriado para a manhã gelada, nem se lembrara de ligar a calefação. Não fizera gosto de usar luto, o que lhe custou mais falatório das janelas indecorosas. O vestido era rosa salmão sem mangas, estampado de estrelinhas creme, delicado frivolité a contornar o decote que mal continha os seios, talvez a pesar três quilos cada um. O penteado era uma carapinha de difícil conformação, dividida ao meio e elevada de cada lado, a maneira de certos penteados franceses do século dezoito. Fátima mantinha o corte curto atrás das orelhas, caprichosamente redondas e abertas, feito borboletas em pleno voo. As sobrancelhas próximas e retas, olhos pequeninos, alheios, rosto oval, nariz indefinível, boca reta, fina. O conjunto da obra dizia de uma menina vencida, porém não oprimida. Cativava à primeira impressão. O espírito ficava-lhe ao lado, caneta à mão, pronta para pequenas anotações em uma agenda de capa preta. A mão direita acariciava um camafeu que contornava o decote, talvez única alusão a seu novo estado de mulher só. Dentro do miúdo coração, iam as fotos do casamento, José à esquerda de quem abria o artefato.

 

A página do jornal fora recortada, estava apoiada junto à taça. O reclame trazia Deixa-nos Antária Santana. O Casaredo se despede de ela diante da Julieta, âncora companheira, plantada no jardim, Praia da Senhora da Pedra sem número. Ficam dispostas ali suas cinzas, em urna pequenina, algumas pedras a imantar o local, doadas por enfermeiros, médicos e pacientes lúcidos. Notifica-se, outrossim, que é o desejo da senhora, lavrado em testamento, o filho, Cristino Santana, venha para dispersar as cinzas no caminho entre Ponte de Sor e Lisboa. Quatro ânforas da mesma cremação, que cabem em uma palma formaram outro caminho, um ponto em Sagres, outro na Amoreira, ainda outro em Azenha do Mar.  Já repousa um punhado de Antária ao lado do rinoceronte, na Torre de Belém, Lisboa. O último bocado, pede-se que o deixe em um parapeito da Alfama, ao abrigo dos gatos.

 

uma vez me disseram
não se demore em tal mirar

é o elmo de Perseu
anda a Medusa pelos becos
a desfilar 
A lua cigana, que a todos seduz
e de ninguém é
mostra sua face
carmencita del mar
e já se desmancha
os dias evolam
as ampulhetas desaguam
os brincos princesas 
os rufos atentos a anunciar 

cantigas de desapegar

 



 

 

 

 

 

 

segunda-feira, 18 de março de 2024

Contos de malhas e mourarias 3


O enfarto

 

 

A vida de Mariano Lole, nome coloratura do escritor de poemas obituários, ia a meio, se considerarmos as estimativas de homem de quarenta e um anos bem alimentado, caminhante por ofício. Depois do falecimento da tia e das várias quintas que ela havia deixado em testamento, vinhedos na maioria, o benefício pecuniário dera a ele tranquilidade de ir e vir, senão a dos príncipes, de certas celebridades. Por conta do conforto, estava sempre de passagem por Lisboa, nos intervalos entre uma feira de livro e outra, várias entrevistas, programas de auditório em extinção, viagens para palestras em escolas de literatura, direito, sociologia e alguma saudade. Seus livros vendiam o suficiente para manter o moral da editora. A agente cogitava tradução da última publicação, Duas caveiras que se amavam, para o italiano e espanhol, idiomas que Mariano Lole dominava com reservas. 

 

O barulho todo não outorgara a Lole prêmio ou notoriedade e, também com isso, estava de bons ventos, pois ainda não encontrara a voz narrativa, fundamental na lide de escritor destacado. Resignado, o homem tinha lá consigo que a voz não soaria. Contentava-se com as murmurações. Se havia alguma grande musa, a lhe servir de para sol, a escrita não revelava. Só e silencioso, Mariano Lole tinha, nas nuvens, aliadas potentes para inspirar-se. Os mortos, em bom número, norteavam-lhe os passos, garantiam  o sustento do oficio. As histórias que coletava ou inventava, permitiam seguir com seu talento de alentador dos que ficam. Um ou outro fado se ouvia nas casas noturnas, letras de sua lavra.

 

O público, formado por esposas chorosas, maridos dolentes, alguns filhos, familiares a espera da abertura de inventário, amantes que disseram adeus a seus amores, além das solteiras, estes eram leitores fiéis. Os outros teriam, inevitavelmente, seu momento. Lole conseguira aliar seu emprego no jornal com a função de correspondente nacional. Em geral, o redator de obituários ia cobrir mortes em incêndios, em casas de recuperação, de idosos, de passagem. Um rapineiro. A morte trivial, surpreendida por uma bala perdida, por um enfarto fulminante, também tinha lugar em seus versos. As coisas maiores, ilustradas por campanhas, mulheres adulteradas, crianças perdidas, largados, viciados, exterminados, em algum momento eram abordadas, até com temor. 

 

Fatima lia o jornal todas as manhãs. José sempre lhe chamara a atenção para aquele costume melancólico, o de ler obituários. No fundo, o marido achava que esta leitura só aumentava a voracidade. Ele via a esposa cada vez mais arredondada nas formas, tanto que a cama quebrou na noite da ponderação decisiva. Depois de muito choro e falta de vergonha, combinaram de dormir em leitos separados já no dia seguinte. Surpreendeu à mulher que, com a chegada dos móveis novos, duas manhãs depois da rusga, ela menos agastada, obituário lido, viesse também a notícia do falecimento. Prematuro, inesperado, em hora indevida, segundo o poema cantava. Não significava, o desentendimento do casal, razão suficiente para adeus tão contundente. 

 

José deitou a cabeça no balcão do estabelecimento junto à Sé de Lisboa, onde tomava a refeição matinal, já que Fátima seguia amuada e ele resolvera dormir na Pensão Residencial Flor dos Cavaleiros. O marido deu, no tampo encerado, diante do café recém filtrado,  seu último ai. O corpo forte e espaçoso amoleceu e não tombou do banco em que se equilibrava. Por sorte, o homem tinha os documentos na carteira, a notícia fatal cruzou as ruas e deu à porta de Fátima sem detença, a do esposo recolhido ao Hospital de São José. 

 

Mariano Lole abordou a atendente no balcão, para pedir seu travesseiro e chá de jasmim, no momento exato em que José sofreu a síncope. Grande presença a do escritor, a socorrer com presteza e evitar qualquer desprestígio. Nas páginas do matutino, os leitores puderam compungir-se e Lole murmurar, em nuvens lilás e cor de amora. Fátima sentiu o que perdera somente quando deu com os versos de soleá dedicados a José

 

Soaram, no tilintar das xícaras 

as gretas dos interruptores

A manhã da Alfama, um espanto 

Um de repente em março
Orvalhava a pele sem casaco

Vento invernado, ergueu as saias
Informes do vestido saco

Clemência dos anjos, após crise hipertensiva

Ele era esperado por quem conta nidificações

Tinha de si aquele sorriso contido
Estrelas a lhe preceder o aroma de café
Deus, o seu pedaço mais bonito, alvorecia em ele

Intocadas palavras, era impossível versejar
A paz cantou loas em derredor e os que passavam
Conspiraram com o perímetro estranha alquimia

O verso não pode demorar-se
Não causou comoção contrária
O mundo não condenou tal contrição

 

 

 

 

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

Contos de malhas e mourarias 2




O amigo elegante



As histórias do homem se espalharam pela capital, o advogado causídico que escrevia poemas obituários. O sucesso editorial que ele fazia, não se podia dizer atrativo para damas casadoiras ou para a comunidade literária. Para os adeus com lenço namorado, havia de se escrever muita coisa ainda. O último livro, Duas caveiras que se amavam, vendeu muito bem na Ler Devagar. A expressão de lince ibérico, que o bigode do advogado e professor de literatura comparada da Escola Dona Filipa de Lencastre desenhava sobre o lábio, prometia alguns suspiros de confeitaria. E foi ali, na Pão Nosso D’Alfama, que o esbarrão aconteceu. Fátima saía, afoita e abraçada a uma cestinha de éclairs. O escritor entrava, airoso, boina na mão. De forma jocosa, o bigode foi-se perder entre os seios da dama, grandes almofadas úmidas, que cheiravam a fermento. Ambos precisaram de alguns minutos, para desatravancar-se e liberar a porta aos fregueses. As raparigas alegres de marré de si, vizinhas de Fátima, entravam no momento em que os dois se recompunham, a ponto de não deixar ver a respiração sôfrega e o coração aos pulos. Desculpas, desculpas, cada par tomou seu rumo. As raparigas pediram chá gelado, Fatima balançou-se até as escadas do sobrado e então parou ao primeiro degrau, a tentar entender o que fora aquele momento, o cartão do escritor espremido entre as folhas do primeiro livro dele, O amigo elegante.

 

sábado, 13 de janeiro de 2024

Contos de malhas e mourarias 1


 




Lisboa Cordilheira e a gata gris


A sintonia dos dois era a de Carlos do Carmo, a cantar o Fado Alegre. Contavam ambos sessenta e tantos anos, bem como um sobrepeso que honrava as poucas vestes de verão e os passos que inventavam para pinicar o assoalho, recém coberto de carpete de madeira. Como o sobrado na Alfama era todo deles e bailavam descalços, nenhum desconforto causavam às paredes laterais, com que dividiam doçarias e estórias. Pelas nove da manhã, Lisboa vibrava convites e enredos e ambos aproveitavam o gritar das gaivotas. 

 

Haviam-se casado quarenta e dois anos antes. Não tiveram crianças à volta e disso quase nunca se falava. Ao invés, os gatos entraram pela janela da sacada e ficaram, variando o tempo de passagem em dezesseis, dezoito anos. Foram Pilar, Tico, Pitua e Ítalo, o que se jogou janela abaixo. Fizeram as vezes de filhos durante o consórcio e, nestes últimos dias, uma frajola rondava, a saber se podia dançar o corrido com eles. Fátima dizia sim. José dizia ainda dói. Argumentava que, se faltassem, o gato ficava perdido ou jogava-se. Por que sonhar com a última falua, Zezé, perguntava a esposa piedosa. Nem imaginava o quanto doía. Até lá viveremos, meu Zezito, despiremos a veste diante da lua e cuidamos do bichano. Depois, os anjos proverão. José ainda resistia, profético. 

 

Não chegavam a rusgas tais dialogações. Quando não era possível resolver, acabavam-se os dois, em travesseiros açucarados. Para maior deleite, dividiam a fornada cheirosa com duas vizinhas solteironas, que vinham cear a convite deles.

 

No fim daquela tarde, chegou um envelope expresso, de Ponte de Sor. 

 

terça-feira, 5 de dezembro de 2023

sobre fármacos para a voz 12






Era de cantar às coletividades

E eu o fiz, como a ostra que trabalha a areia

Era de escutar a permissão das águas

E eu nasci, bebi o sal, cosi a manta

 

Era de olhar os irmãos da herdade

E eu passei, como aduana que determina

Era de empunhar o cajado e erguer o lume

E eu vim, a ponte, o cais

 

Sei que é de outras vozes chorar

Sei que é de outras soar nas plataformas

Sou lúcida, observo, cantar é um lugar

 

Sei que é de outros olhos a Terra

Sei que o coração desejaria as velas e as faluas

Sou servil, sou além, ultramar




inspirado na canção Horizontes, de Teresa Salgueiro

domingo, 5 de novembro de 2023

sobre fármacos para a voz 11

 

escada da Barragem de Varosa - Portugal


Diante do sol improvisado

Que se deu a brilhar por dois dias

Vi teu sorriso encantado

A cantar-me estranhas nostalgias

 

Ah, Évora

Que de Évora, me estou lembrando

Ah, Évora

Que de Évora, me estou lembrando

 

 

Inspirada no canto tradicional português Eu hei de dar ao menino 

 

*rescue – floral de emergências

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

domingo, 1 de outubro de 2023

Sobre fármacos para a voz 10


Imantaste uma agulha 

Por brevidade e atrito

Cravaste-a n’um pedaço de isopor 

Colocaste os dois artefatos 

Em tanque raso d’água

E o campo magnético 

gerado pela agulha imanada

apontou o rumo norte

aonde estava o xaile

aquele reservatório d’amor


Inspirado na canção O xaile de minha mãe

 

*belladona – para amenizar as iras