Algo sobre Juanita e a Pousada do Riacho
Juanita havia entrado antes de Letícia e Magda para a ordem. O pai a obrigara, para esconder sob o hábito uma gravidez indesejada. A moça tinha quatorze anos na ocasião. Filha caçula de estancieiros, serena e linda como os jacintos, quase não falava, a não ser com seres invisíveis. A mãe morrera no parto, de cansaço. Em dado instante, Juanita dobrava os joelhos onde estivesse, estendia os braços para o céu e claudicava textos longos, prolixos, que lembravam a São João da Cruz. Fora assim desde os três anos de idade. Chorava, chorava toda uma cascata de luz. Levava guampadas do pai, para que não bancasse a louca e o matasse de vergonha. Dessas preces, a menina se levantava e ia bater roupas no rio, sua função principal na casa com dez irmãos, todos homens. Como foi que embarrigou, ficará para outra ocasião saber. Fato é que chegou ao convento apavorada, com cerca de doze semanas. A Abadessa a recebeu pessoalmente no portão e logo a encaminhou a uma clausura sem janelas, no terceiro andar, sem que a moça visse ou ouvisse algo além de um longo corredor vazio e seis lances de dezessete degraus. O cubículo onde ficou por três dias tinha um colchão úmido a um canto, uma lâmpada de baixa amperagem que oscilava do teto. Dar com o balanço leve do fio foi um consolo, para alguém que precisava de ar. Havia uma abertura na parte de cima da porta, por onde passava um frio que mais jorrava carícia de santo. Ao escutar a chave correr no ferrolho, dobrou os joelhos. De seus lábios, com formato de botão de rosa, brotou o seguinte alento: Jesus era inocente. E o francês católico, ao ouvir isso, encaminhou-se para a guilhotina, confortado. Hoje é terça-feira, 20 de maio. A nona hora do dia está completa. Não longe desta clausura, o sol sorri. Amigos queridos, de todos os quadrantes do Universo, Paz. Sou mais humana do que imagino e este sentir não é nada confortável, a menos que eu me apoie na frase que inaugura meu calvário. Jesus era inocente. Gostaria de cantar sou cristã, cheia de amor e estrelinhas. É muito oscilante o sentimento. O meu lado racional é carrancudo à beça quanto a isso. Entendo, Jesus era inocente. Ontem também se disse: a ciência perdeu a razão. Então não sei, Amigos, o que será. Sei de agora. A paz está no meu peito. Sou capaz de praticar os silêncios das madrugadas. Bendita a senhora de branco que me guardou aqui. Não é caso de guilhotina para mim, acho. Talvez abandono, em meio a madeiras, cal e frio. Apontar os fascistas, fariseus, comandos vermelhos, gangues terroristas, guerrilheiros, reacionários, latifundiários, bandidos de toda ordem, fácil. São referências também, quase que identificações. Ontem, o pensamento que veio apontava para andar de carruagem, sem merecer, que isso atrai ladrões. Faz sentido? Amigos, Jesus era inocente. Sei que tudo o que eu disser será usado contra mim no tribunal. Assim foi também com o Cristo. Havia nas falas d’Ele uma integridade, uma magnanimidade que está longe daqui. Jesus manteve o coração com o Pai, aceitou a prova e foi para o cadafalso, entre dois ladrões. Minha companhia, neste momento, são os Amigos. Não quero me impor cilícios ou torturas mais graves. Quero a sorte de um amor tranquilo. E não será com um parceiro de rio que terei isso. Também não quero saber a quantos abandonei, traí em outras existências. Penso que passamos muito da História em guerra, pelo nome de Jesus inclusive e que é justo pagar o que é devido. As provas contra mim apontam para estes fatores de risco, guerras, fora o autocídio, a maior das possibilidades, pelo que vivo neste momento. É provável que eu tenha desistido em cima da hora, quando a travessia estava quase integralmente cumprida. Sinto esta verdade bater, como se eu fora um rochedo sedimentar e a água do mar vergastasse, impiedosa e espumosa. Não me adianta cantar afasta de mim esse cálice. Penso no filho, sobre ele pedir a dor sobressalente da última moratória. Penso na mandíbula tensa com a qual ele articulou suas falas, este homem misterioso que saiu de um chapéu, do mundo de Alice, e quer renascer. Penso na bruxa Cubas, no significado de Misericórdia. Penso nas Princesas, as Patrícias e as Gigantes do Daomé. Penso nas escravas de Xerxes, em Ester. Nas colhedoras de cana. Em tantas, tantas mulheres, bendigo a todas. Penso nas garagens do Soweto e na impossibilidade de ter um carro. Não consigo chorar aqui, ficará úmido demais. Meu corpo trepida. Juanita tombou para frente, sobre a barriga, e um lago de sangue escorreu por baixo da porta.
Friinho, dia de marcenaria, de montagem de cenário para um auto a Maria de Nazaré, dia de provação e expiação. Dia de silêncio. Dia em que Juanita sofreu um aborto espontâneo. Dia de lixar paredes, ruído pouco. Um obstetra muito gentil veio, tratou da moça sob os olhos atentos da Abadessa, ali mesmo no cubículo. Ponto. Eu tenho problemas sérios com homens, mais ainda com mulheres, diria Juanita em confissão, dias depois daquele mar vermelho. Perdi o jeito com as crianças? Um menininho disse que não. Eu não vou falar de amor. Se me disserem que errei eu direi sim, eu sei. E não foi só um erro. Também pode ter sido um passo certo, para a Libertação. Vai-se saber. Jesus era inocente. Juanita dobrou os joelhos diante de sua confessora. Do que se trata toda ilusão? Todo o percurso de uma jornada como a minha? Eu a quereria de outra forma? Sinceramente? Jesus, mesmo sabendo o passo a passo, parava para conversar com o Pai. Preciso me dar a este momento, com Ele, Jesus. Aguardo a chegada do parceiro de rio. Se eu pudesse pedir a Jesus, pediria o silêncio que me cabe, o silêncio meditativo, a serenidade respiratória. Pediria para que o nojo parasse, para que eu possa perdoar a mim, por ser inconsistente, incoerente. Gostei daquela ideia de que uma mente aturdida pode se curar da obsessão mais facilmente. Uma mente obnubilada talvez não resista, quando a separação é necessária, algo assim. Tenho grande preocupação. A Bá que cuidava da família, do pai, tão altiva no trabalho, enfrenta a luta contra um câncer. Eu sabia que havia essa possibilidade, dela estar doente. Pus a mão sobre o peito dela, rezei. As dores pararam. Agora que enfrento clausura, procurarei enviar-lhe fótons, toda vez que eu puder. Seu Ismael está na lide, no campo do pai. Peço que ele olhe pela Bá. Fui lá na estância falar com ele. É interessante, colocar nas pessoas o refrigério do qual necessitamos. Ele foi embora às dezesseis, um tanto afoito. Foi um dia difícil, para mim muito pesado. Fiquei na clausura por mais de uma hora após a saída do doutor. Eu imóvel, um pouco mergulhada em profunda melancolia, a vestir branco. Fui tentando falar com Ela, disse pra ‘Ela’ – Inteligência Suprema - que a prova estava muito pesada, que eu estava trabalhando para aceitar o nada, o vazio, o imóvel. Mais para o final da estadia, atendi a um pedido estranho, por sacos de lixo e aspirador. Foi como voltar do Nirvana. Voltei ainda à clausura, suponho. Do lado de lá do muro, o serviço seguiu, o de enterrar os mortos. Pus os vasos que seu Ismael repatriou no lugar deles, as plantas sofrem, carecem poda para florir. Meditei minimamente sobre sanidade. Então alguém me chamou para ver. Pode ser que fiquemos mais um mês com este palco, alguém murmurou. Ou indefinidamente, vai-se saber. Eu espero tudo. Lembrei-me, muito, de um homem de cabelo branquinho, que falava comigo enquanto as roupas repousavam no quarador. O abandono não existe, dizia ele, um sorriso encantador. O doce homem também disse que o parceiro de rio se esforçou muito pra estar onde esteve, preferiria estar na casa dele. Que era para eu aceitar as coisas como são. Falou também de cantarmos, em algum momento, nas próximas vezes em que ele vier. Precisamos entender o que aconteceu, deixei a frase no ar. Sinceramente? Não sei se temos futuros. Dá a sensação de maturidade emocional e em seguida, destrambelha tudo. Eu também disse que esbarrei na cerca elétrica dele e pulei o muro, para o lado proibido dele. E agora? Ele precisa abrir o portão da cidade para eu sair. Faz sentido? Não sei explicar, mas experimentei um quase alívio ao fechar-se a porta da clausura, eu vestida de branco, como se eu tomasse posse do espaço que me emprestaram para viver. Creio, não vá esfriar tanto agora. Se o problema era frio, parece que foi resolvido, com certa classe, para eu me calar mesmo. Estou assombrada, ainda, com a estrutura que se enjambrou. Se ontem falei sobre um raciocínio carrancudo, hoje direi que ele está em curto. Os sentimentos, escorreram com o sangue. Não estou somando lé com cré. Tempo instável, sem chuvas nesta quarta-feira, 21 de maio.
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