segunda-feira, 18 de março de 2024

Contos de malhas e mourarias 3


O enfarto

 

 

A vida de Mariano Lole, nome coloratura do escritor de poemas obituários, ia a meio, se considerarmos as estimativas de homem de quarenta e um anos bem alimentado, caminhante por ofício. Depois do falecimento da tia e das várias quintas que ela havia deixado em testamento, vinhedos na maioria, o benefício pecuniário dera a ele tranquilidade de ir e vir, senão a dos príncipes, de certas celebridades. Por conta do conforto, estava sempre de passagem por Lisboa, nos intervalos entre uma feira de livro e outra, várias entrevistas, programas de auditório em extinção, viagens para palestras em escolas de literatura, direito, sociologia e alguma saudade. Seus livros vendiam o suficiente para manter o moral da editora. A agente cogitava tradução da última publicação, Duas caveiras que se amavam, para o italiano e espanhol, idiomas que Mariano Lole dominava com reservas. 

 

O barulho todo não outorgara a Lole prêmio ou notoriedade e, também com isso, estava de bons ventos, pois ainda não encontrara a voz narrativa, fundamental na lide de escritor destacado. Resignado, o homem tinha lá consigo que a voz não soaria. Contentava-se com as murmurações. Se havia alguma grande musa, a lhe servir de para sol, a escrita não revelava. Só e silencioso, Mariano Lole tinha, nas nuvens, aliadas potentes para inspirar-se. Os mortos, em bom número, norteavam-lhe os passos, garantiam  o sustento do oficio. As histórias que coletava ou inventava, permitiam seguir com seu talento de alentador dos que ficam. Um ou outro fado se ouvia nas casas noturnas, letras de sua lavra.

 

O público, formado por esposas chorosas, maridos dolentes, alguns filhos, familiares a espera da abertura de inventário, amantes que disseram adeus a seus amores, além das solteiras, estes eram leitores fiéis. Os outros teriam, inevitavelmente, seu momento. Lole conseguira aliar seu emprego no jornal com a função de correspondente nacional. Em geral, o redator de obituários ia cobrir mortes em incêndios, em casas de recuperação, de idosos, de passagem. Um rapineiro. A morte trivial, surpreendida por uma bala perdida, por um enfarto fulminante, também tinha lugar em seus versos. As coisas maiores, ilustradas por campanhas, mulheres adulteradas, crianças perdidas, largados, viciados, exterminados, em algum momento eram abordadas, até com temor. 

 

Fatima lia o jornal todas as manhãs. José sempre lhe chamara a atenção para aquele costume melancólico, o de ler obituários. No fundo, o marido achava que esta leitura só aumentava a voracidade. Ele via a esposa cada vez mais arredondada nas formas, tanto que a cama quebrou na noite da ponderação decisiva. Depois de muito choro e falta de vergonha, combinaram de dormir em leitos separados já no dia seguinte. Surpreendeu à mulher que, com a chegada dos móveis novos, duas manhãs depois da rusga, ela menos agastada, obituário lido, viesse também a notícia do falecimento. Prematuro, inesperado, em hora indevida, segundo o poema cantava. Não significava, o desentendimento do casal, razão suficiente para adeus tão contundente. 

 

José deitou a cabeça no balcão do estabelecimento junto à Sé de Lisboa, onde tomava a refeição matinal, já que Fátima seguia amuada e ele resolvera dormir na Pensão Residencial Flor dos Cavaleiros. O marido deu, no tampo encerado, diante do café recém filtrado,  seu último ai. O corpo forte e espaçoso amoleceu e não tombou do banco em que se equilibrava. Por sorte, o homem tinha os documentos na carteira, a notícia fatal cruzou as ruas e deu à porta de Fátima sem detença, a do esposo recolhido ao Hospital de São José. 

 

Mariano Lole abordou a atendente no balcão, para pedir seu travesseiro e chá de jasmim, no momento exato em que José sofreu a síncope. Grande presença a do escritor, a socorrer com presteza e evitar qualquer desprestígio. Nas páginas do matutino, os leitores puderam compungir-se e Lole murmurar, em nuvens lilás e cor de amora. Fátima sentiu o que perdera somente quando deu com os versos de soleá dedicados a José

 

Soaram, no tilintar das xícaras 

as gretas dos interruptores

A manhã da Alfama, um espanto 

Um de repente em março
Orvalhava a pele sem casaco

Vento invernado, ergueu as saias
Informes do vestido saco

Clemência dos anjos, após crise hipertensiva

Ele era esperado por quem conta nidificações

Tinha de si aquele sorriso contido
Estrelas a lhe preceder o aroma de café
Deus, o seu pedaço mais bonito, alvorecia em ele

Intocadas palavras, era impossível versejar
A paz cantou loas em derredor e os que passavam
Conspiraram com o perímetro estranha alquimia

O verso não pode demorar-se
Não causou comoção contrária
O mundo não condenou tal contrição