sábado, 13 de janeiro de 2024

Contos de malhas e mourarias 1


 




Lisboa Cordilheira e a gata gris


A sintonia dos dois era a de Carlos do Carmo, a cantar o Fado Alegre. Contavam ambos sessenta e tantos anos, bem como um sobrepeso que honrava as poucas vestes de verão e os passos que inventavam para pinicar o assoalho, recém coberto de carpete de madeira. Como o sobrado na Alfama era todo deles e bailavam descalços, nenhum desconforto causavam às paredes laterais, com que dividiam doçarias e estórias. Pelas nove da manhã, Lisboa vibrava convites e enredos e ambos aproveitavam o gritar das gaivotas. 

 

Haviam-se casado quarenta e dois anos antes. Não tiveram crianças à volta e disso quase nunca se falava. Ao invés, os gatos entraram pela janela da sacada e ficaram, variando o tempo de passagem em dezesseis, dezoito anos. Foram Pilar, Tico, Pitua e Ítalo, o que se jogou janela abaixo. Fizeram as vezes de filhos durante o consórcio e, nestes últimos dias, uma frajola rondava, a saber se podia dançar o corrido com eles. Fátima dizia sim. José dizia ainda dói. Argumentava que, se faltassem, o gato ficava perdido ou jogava-se. Por que sonhar com a última falua, Zezé, perguntava a esposa piedosa. Nem imaginava o quanto doía. Até lá viveremos, meu Zezito, despiremos a veste diante da lua e cuidamos do bichano. Depois, os anjos proverão. José ainda resistia, profético. 

 

Não chegavam a rusgas tais dialogações. Quando não era possível resolver, acabavam-se os dois, em travesseiros açucarados. Para maior deleite, dividiam a fornada cheirosa com duas vizinhas solteironas, que vinham cear a convite deles.

 

No fim daquela tarde, chegou um envelope expresso, de Ponte de Sor.