Tudo que nasce tem fim... e recomeço
Os dias mais bonitos apareciam anotados, frases curtas, palavras indicativas, algum fato, alguma emoção. Para deixar exemplos, no dia 9 de janeiro, a caderneta preta menciona faz seis meses que Zezito partiu. Já no dia 2 de fevereiro estavam belas as bandeirinhas no Largo do Chafariz de Dentro. No mesmo dia uma lufada suspendeu a barra do vestido e estive meio nua para todos. Na noite daquele dia escutar a Sofia Ramos deu-me dor. No dia 15 de março faz-me falta o pinicadinho dos pés sobre o assoalho. No 16 li no obituário que Aní vaga pelos arredores, alguém a viu adentrar à Ponte, mais perdida que eu.
Não sabemos se mentira visitou a infância de Fátima, e poderíamos ser prestimosos com ela, explicar as fantasias de criança, sua prodigalidade em aumentar pontos em histórias com muito nexo, o que pode causar confusão ao cotidiano. Por esta razão se recomenda, que tu dês ao filho uma caixa de lápis, bem cedo. Há uma chance de nascer, deste encontro com o grafite, acrescida uma pitada de amor familial, um bom comunicador. Em aquele preciso instante, diante das ladainhas sombrias de Mariano Lole, Fátima se deu conta de algo seu.
Mariinha Donis, ex acompanhante para homens com alguma graduação, deu a Cristino Santana a informação de que ele precisava e também seu cartão de visitas, amarelo maré. O homem, saído de um auto com chofer, conduzia uma senhora magérrima, um tanto maltrapilha e transtornada. A dama fora encontrada a perambular, a meio da Ponte 25 de Abril. Chorava e pedia por uma Carmén. O chofer, acostumado a casos de ideação suicida e outras mazelas de trânsito, inclusive o transporte de gente morta, se opusera a parar, inda mais em uma ponte. Sem perder a elegância, Cristino só disse e se fora a tua mãe, a voz suave e hipnótica, que não permitiu réplica. Bastou, para um resgate relâmpago, quase um rapto. A mulher debateu-se por algum tempo. Rendida pelo cansaço, frio, fome e medo, pode então balbuciar, vivia em Alfama do Mar, perto de uma casa que fabricava travesseiros açucarados. Depois de repetir Carmén várias vezes, foi vencida pelo sono. O chofer, ainda amolado com a situação, terminou por apiedar-se. Entendeu que seu cliente identificara na senhora uma avó, a mãe, uma parenta. Seguiu então em direção ao Largo do Chafariz de Dentro ou qualquer lugar, no perímetro, onde fosse permitido acostar o auto. Era temporada de turistas aos borbotões.
Cristino teve alguma dificuldade para despertar a senhora, já nas proximidades do Museu do Fado. Aní assustou-se, mantinha-se atônita. Ainda mais insinuante, o homem terno propôs a ela caminharem devagar, até onde estava Carmén. Antes, quem sabe, um prato de sardinhas e batatas, uma ginjinha. Tocada nas fibras mais profundas, Aní foi saindo do autocarro com certo desprendimento, ir com um homem bem apessoado fez-lhe bem. Além da gorjeta, Cristino deixou um pouco mais de euros, para que o chofer higienizasse o interior do veículo e não tivesse prejuízos com a futura clientela. Vencidos muitos lances de escada, foi Mariinha quem abreviou a aflição de Anunciación. Apontou, galanteadora, a Pão Nosso d’Alfama de onde, naquele exato momento, Fátima saia a braço com Helena achada de Troia.
Como aumentar em um só ponto os Contos de Malhas e Mourarias? Se havia tanto encontro e desencontro para ajustar? Mesmo que o cenário mude, vá dar ao interior de um país filho do progresso, ainda se poderá saber do desenvolvimento destes informes pueris, lembranças de caderneta preta. Dos gatos de Fátima, ainda não se tem notícias. Entrou por uma porta, saiu por outra, D. Anfonso X e sua corte poético-musical que nos conte outra.
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