sexta-feira, 25 de abril de 2025

Guairacã 4





4 – gente que vai para o mar

 

 

Os paleontólogos ainda dormiam quando um ônibus muito antigo parou, há alguns metros da pousada. O sol mal despontara, um silêncio irmanado com o rolar das águas, nesse dia serenadas pela falta de chuvas. Uma ou outra ave madrugadeira noticiava as manchetes, seria dia quente e molengas. Um ou outro curioso abria fresta de porta, veneziana, a ver quem é que chegava por aquelas bandas, onde o bandeirante perdera as sandálias. Turistas em geral traziam riquezas, euforia, chamavam encontros de praça, cantoria e dança. Tomara, seu Guairacã permitisse um arrasta-pé ali no Rincão, há muito que não se bailava. 

 

Desembarcaram do catajeca nove viajores, que poderiam ter conexão entre si, se não de passado, de futuro. O primeiro foi Garnizé, o condutor. Sergipano sem pai ou mãe, criou-se na estrada a vender de um tudo, até ter dinheiro suficiente para comprar aquela cangalha, que dirigia há cerca de cinquenta anos. Garnizé encostava o carro nas rodoviárias, onde obtivera permissão para o fazer, e recebia passageiros assustadiços, no máximo dez adultos sem muita bagagem, que almejavam visitar ermos lugares, viver vida simples em excursão duvidosa. Garnizé permanecia com o grupo durante vinte e quatro dias e o devolvia à estação, todos saudáveis, satisfeitos e carregados de histórias com três páginas, desenhadas a nanquim. Os folders de passeios, que o motorista oferecia, vinham esboçados em literatura de cordel. Naquela manhã, o destino acertado foi a Pousada do Riacho. Era pegar ou largar.

 

A segunda figura, muito alta e magra, cabelo cortado a Chanel, roupas escuras, olhos contornados a cajal, unhas pintadas de preto, dedos repletos de anéis, coturnos, a narcótica Adele. Aqueles que leem os posts deste sitio hão de se lembrar dela, paciente psiquiátrica, internada em uma casa de idosos no litoral português. Não se trata, aqui, de reanimar queridos, como o fez magistralmente o José Mauro de Vasconcelos[1], mas é quase isso, talvez compaixão por uma existência tão desgraçada e patética, resumida a um desmanche de família sem adultério, ideações suicidas e um perder de vista de cartelas de Xanax, furtadas às enfermarias por onde passava. Nem a moça sabia ao certo sobre seu destino, que sentido tinha sua existência. Via-se que era jovem, sofrida, carregava imensa solidão. Nos últimos tempos, Adele fizera pacto consigo, de não assombrar mais ninguém. 

 

Três noviças da Congregação Franciscana, terceira ordem Seráfica. Delas, será falado mais adiante. Grudadas umas às outras, faziam lembras um cefalópode circense, antes de entrar em panela fervendo. Agora, era tratar de acomodá-las, o melhor possível, à vida fora da clausura. Ao vê-las, Garnizé as imaginou, a todas, suas esposas. Cuidava delas como se fora gatinhos miúdos. 

 

Uma senhora obesa, na casa dos cinquenta se supunha, dessas que perdem peso e tornam a engordar mais. Terninho Catalina e chapéu com uma pena espetada do lado direito, pele de porcelana antiga, sutilmente arcada, pés pequeninos. No momento, a senhora estava em fase esvaziada, trinta quilos a menos, olhar jovial, tudo nela arredondado e cheirando a glassê. Ela trazia consigo uma encomenda para o dono da pousada. 

 

Um ex detento, acusado de participar de um arrastão no Farol do Cabo Branco. Soube-se, um ano depois de seu encarceramento, que fora privado da liberdade injustamente. 

 

Dois palestrantes do curso livre de literatura. Pertenciam a renomada escola nacional. Vinham a procura de histórias de tradição oral para seus doutoramentos.

 

O grupo caminhou ordeiro e arrulhando entre si, menos as freiras, que rezavam as matutinas em silêncio. Garnizé tocou a sineta à porta da pousada e Jica não se demorou em abrir.

 

Ah, inigualável canto

Feito de esperas

De voleios efêmeros

 

De certo, testemunho mareado

Em preces entronizado

das fábulas Caetés



[1] Escritor brasileiro, autor de preciosidades como Meu pé de laranja lima, Rosinha minha canoa, Doidão.

Nenhum comentário:

Postar um comentário