sábado, 21 de junho de 2025

Guairacã 6





Algo sobre a prisão inocente

 

Não se trata de história oral, que seria preciso expressa-la diante do rosto de alguém. Também não é um cordel, ilustrado com as figuras do cangaço, a caatinga, o mandacaru, o areal sem fim e a variante dos calangos sertanejos, a tomar sol sobre os pedrelhos, um fluxo gracioso entretecido de bilro. Talvez seja história de um dia, umas horas de encontro, ocorrido diante de um fogão a gás, pia de pedra preta sobre base de alumínio e madeira, mesa velha de compensado, cadeiras bambas, toalha de flor, uma confusão de papéis, dois violões de afinação criativa, cravelhas rodadas com certa fúria, as cordas retesadas em certas notas que não figuram em alfarrábios, cantigas de um lugar por escutar, memorizar, estas oriundas do extremo oposto ao catingal, onde o minuano uiva. Entre os papéis, pratos, copos, garrafas, biscoitos recheados de goiabada, erva de matear, vinho, bilha, ingredientes de refeição, temperos, água quente, oliva, páprica, cominho, sal, orégano, alecrim do pé, batatas, um amor de milênios.

 

E ele pisou o assoalho amadeirado, o peso da mocidade a despregar-se dos vidrilhos de um lenço amarrado ao pescoço, o pó das botinas a branquear os vãos. Depois, se verá que há ali, sob aquele pano bordado de pequenos espelhos, um vergão perigoso, ainda arrouxeado. Um relógio antigo, pouco acima da cabeça do velho Guairacã, marcava sete e meia. O estalajadeiro tinha o rosto tranquilo, a novidade chegava à Pousada do Riacho em penca naquele dia, o catajeca de Garnizé calhava bem. Não surpreendeu-lhe aquele rapaz triste, que perfumou o ambiente, fino porte, tez cansada. O que chamou a atenção foi, mesmo, o lenço. Uma tensão súbita, nascida de memórias rústicas, encheu o peito do bandeirante. Cumprimentou o hóspede, sem fazer contato visual mais significativo.

 

Será, este capítulo, parte da saga dos moradores do Riacho, um episódio insólito. Talvez, somente interesse à ameiva sob o vaso, o Gilseu, aquele arremedo de calango, habitante da pousada que, naquele dia, viu brilhar não o lenço, porém um corte de batata inglesa, que rolou das mãos da Jica diante de seus olhinhos sonolentos e foi-lhe surrupiado, pelo moço dos vidrilhos, com um atraso imperdoável de vinte segundos, a contar da queda até o momento da incorporação ao guisado, ai, a tola Jica e seu jeito trapalhão. Gilseu nunca saberia, se se tratava de manjar ou pedra preciosa o que viu. Só soube que brilhava. Quanto a Jica, o gemido que deu, Xairo Mariam, disse muito. 

 

Passado o difuso tempo entre olhar a Magda - até onde se sabe, noviça da Congregação Franciscana, terceira ordem Seráfica -, enquanto o catajeca sacolejava na estrada, e o juntar o pedaço cru da batata na cozinha, uma sensação de segurança nova. O rapaz do lenço de vidrilhos estabilizou o próprio tino, recostou-se ao balcão da recepção e deu com tecido leve, branco empoeirado, o fio que contornava a cintura e descia, balançoso e cúmplice. A menina era um candeeiro de metro e meio, uma Sant’Ana ao redor do mundo. Jorge paraibano não cabia em si, o aperto no pescoço não lhe deixava ir muito longe no encantar-se. Então, pareceu um relâmpago. Seria ilusão, ou era mesmo ameiva aquele ser, imóvel sob o vaso do corredor? A partir daquela distração fugaz, o ex detento fez do réptil uma chave. Se não sabia rezar, sabia identificar sinais. Xairo, Mariam.  Gilseu, a ameiva, se tornaria, breve, um camarada de falar sem falar, a quietude que todo homem possui dentro. 

 

Bom dia, azuis nos cinzentos do dia. Assim desenhou-se o sorriso tímido no rosto daquele dono de pousada, o Guairacã, aos excursionistas. Na lerdeza de um canto de mundo onde a natureza era mãe, a cachoeira chorava, as papeletas de identificação iam passando de mão em mão. Uns preencheram a ficha no balcão, outros usaram a mesa de refeições. Jica seguia com sua feitura do desjejum, atrapalhada com a presença do Jordano, o paleontólogo que tocava violão, debruçado à mesa da cozinha. Mais um quarto de hora se passou até que o grupo fosse encaminhado a seus respectivos aposentos, pela mesma Jica que compunha a refeição. Ficou combinado, às nove horas desceriam para merendar. Assim como os paleontólogos na véspera, os homens foram refrescar-se na bica de fora da casa. As mulheres, mais respeitosas entre si pela presença das noviças, aguardaram a vez na bica da casa de banho, esta suficientemente organizada para acomodá-las juntas, com alguma privacidade. 

 

Jica tratou de dividir os hóspedes. As noviças ficaram com a janela de frente para o riacho. Jorge aceitou dividir espaço com os dois universitários; da janela deles também se podia ver parte da queda d’água. Fátima, a lisboeta, ficou com o espaço que acomodava um casal, no segundo piso. Acostumada que era a muitos lances de escada, não reclamou dos doze degraus que deveria subir. Adele, que naquele reduto não seria conhecida como narcótica acolheu, quase que com gratidão, o mirante. Por último, o condutor Garnizé ficou bem instalado na cama do velho Guairacã. O bandeirante preferia dormir ao relento, como já foi contado, ou em um cadeirão perto do fogo, na cozinha. 

 

Um amigo disse uma vez: está nublado, mas o sol desperta ali, só se cobriu com o poncho. Guairacã piscou os olhos no momento em que o vidrilho refletiu o azul do céu. Verdade e consciência andam muito unidas nessa condição, o velho resmungou de si para si. A consciência não engana. Pode-se cobrir ela com outro poncho, até molhado. A verdade mora no conjugado, desvão da consciência.  A verdade difere da convicção. É o correto assentado, o bem proceder que repousa sob a forte camada de nuvem. Xairo, Mariam. Um alivio, toda vez que desagua. Jorge limitou-se a escutar o burburinho das vozes, suspirou ao ouvir a prece murmurada pelas noviças. O rapaz foi deixado em paz com sua nostalgia. Os moços estudados, que lhe fariam companhia no quarto, mostraram-se disponíveis para trocas amistosas. Deram-se as mãos Juvenal, Gaudêncio e Jorge. O mate esperaria, ainda mais dois dias. 

 

Ia virar a maçaneta Fátima, a lisboeta, quando Jordano Guerra, saído da cozinha, de violão contra o peito, rondou o corredor. Aquela senhora era tão familiar que o moço piscou quatro vezes até se dar conta. 

 

Caso os leitores habituais perguntem e aquele algo, sobre a prisão de Jorge no Farol do Cabo Branco, como o rapaz se juntou à excursão, de lenço ao pescoço, a esconder um vergão roxo, terão de esperar mais algum tempo para obter elucidações. Xairo, Mariam.

 

Dentes de pecari tajacu 

Gramínea e maricão

Silêncios, algum trovão

 

De palco em palco

De drama e pantomima

O coração batido

acende o lampião







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