domingo, 4 de agosto de 2013

Projeto Mannaz

Para posterior estudo. Você encontra esta publicação também no blog projetosantoantoniodelisboa

Projeto Mannaz: experiências de criação musical vocal
                                                                        Liane Guariente[1] lianeguariente@gmail.com
Introdução
          Em fevereiro de 2013 teve inicio a consecução do Projeto Mannaz[2], projeto de extensão universitária idealizado junto a Coordenação de Extensão e Cultura da Faculdade de Artes do Paraná (FAP). Algumas formas de cantar a vozes tornam um ambiente são. Esta e a tese. O objetivo do projeto consiste em aliar, em trabalhos de criação vocal, grupos vocais de várias formações, lideranças, ideologias e níveis de desenvolvimento musical, a fim de interferir em espaços específicos, de modo a saneá-los. Os procedimentos e técnicas de ensaio utilizados pretendem levar um grupo participante, a médio prazo, a auxiliar o outro durante as performances. O que se espera entre os participantes e a soma de força, dinâmica, precisão, expressividade e corporeidade, além de aprimoramento do senso estético musical para, em movimento solidário, alterar a relação entre espaços e pessoas, entre cantantes e ouvintes. Consolidando um repertório que mescle músicas de diferentes procedências e épocas em conformidade com composições inéditas, a meta final e a ampliação da consciência, limpeza e clareza para quem estiver presente ao encontro musical.
          O presente projeto esta embasado em experiências anteriores, com resultados significativos em curto prazo, realizadas com grupos não cantantes de trabalhadores da Kraft, Vale, Esso, Volvo, Tintas Renner e com a observação do Coral do Centro Espirita Ildefonso Correia (Coral do CEIC), onde procedi à coleta de dados para minha dissertação de mestrado, intitulada Comunidades de pratica musical: estudo sobre um grupo coral de Curitiba, defendida em dezembro de 2010 e constante do acervo da Biblioteca da UFPR.
          O primeiro grupo vocal a participar do processo em 2013 foi o SegundaSabado, da Universidade Tuiuti do Paraná (UTP), seguido do Coral da Associação dos Professores do Paraná (Coral da APP), do Grupo de MPB da Universidade Federal do Paraná (GMPB) e de voluntários dos cursos de Licenciatura em Música, Licenciatura em Teatro e Bacharelado em Teatro da Faculdade de Artes do Paraná. O Coral do CEIC, o Grupo folclórico Luce dell Anima e novos grupos, membros da comunidade curitibana e região metropolitana, estão sendo convidados a participar do processo a partir de agosto de 2013.
          Os encontros vêm ocorrendo duas vezes por semana, um deles para atender a cada grupo em suas especificidades e outro, de frequência livre, destinado à troca de experiências com criação vocal entre todos os participantes, realizado nas dependências da FAP.
Atuação no primeiro semestre de 2013: primeiros agrupamentos, primeiras sessões de criação
SegundaSabado
          Iniciei o processo a partir do grupo ao qual faço direção musical desde 2010, o SegundaSabado, da UTP. O grupo, originariamente de formação coral leiga, foi transformando sua característica primeira de reunir pessoas diletantes e pouco engajadas, para concentrar cantantes com interesses em aprimoramento vocal e musical, mais disponíveis. Dessa forma, o SegundaSabado, formado basicamente por profissionais liberais voluntários, não cantantes, vem-se constituindo como grupo artístico, com repertório temático, em acordo com o nível técnico e expressivo dos participantes. Em 2013 o repertório, essencialmente de Música Brasileira, abriu suas fronteiras, para respirar novas sonoridades. Introduzi obras da Renascença e da Música Latino Americana.
          Como o SegundaSabado tem encontros as segundas-feiras e aos sábados, foi possível propor-lhe o exercício do Mannaz. Com esse formato de atendimento organizei as primeiras estratégias, separando um dia para o trabalho especifico (aprimoramento vocal, leitura e estudo interpretativo de peças do repertório, atendimento as necessidades do grupo) e outro em que iniciei o processo de criação vocal e aguardei os novos participantes, convidados via Facebook. Conto, no grupo, com a participação de dois músicos, um tecladista e um violonista, que tem sido imprescindíveis na manutenção da afinação e segurança para o canto a vozes. O violonista toca as segundas-feiras e o tecladista as segundas e aos sábados. Ambos passaram a integrar o grupo também na função de cantantes.
          Nos primeiros encontros aos sábados, o SegundaSabado teve contato com duas ou três novas pessoas por sessão, que em geral não retornavam na sessão seguinte. A princípio o fato pareceu negativo ao processo. Adotei a opção de realizar entrevistas semiabertas todas as semanas, promovendo enquetes sobre o estado dos trabalhos, sugerindo inclusive sairmos do projeto. O grupo abriu algumas hipóteses, das quais destaco três, a saber: 1- somos grupo constituído e temos dificuldade em absorver novos adeptos. 2- o nível de desenvolvimento musical em que nos encontramos está  aquém das pessoas que se aproximaram num primeiro momento. 3- a proposta não e clara o suficiente para motivar novos engajamentos. O grupo, apesar dos reveses,  decidiu permanecer na proposta, dadas as novas possibilidades de espaço físico e encontro promissor, como o que ocorreu junto a algumas cantoras curitibanas, que vieram conhecer a proposta e proporcionaram ao SegundaSabado confronto e novas percepções sobre o que e cantar.
          O SegundaSabado sofreu seu primeiro impacto ao defrontar-se com o espaço do Pequeno Cotolengo em maio de 2013. Já estivera no local em anos anteriores, sem o compromisso da proposta do Mannaz. Falhei em utilizar o mesmo comportamento das outras apresentações. O grupo esperou o horário de “entrar em cena” de forma similar, sem concentração específica, sem “aquecimento”. Confiei no encontro realizado no dia anterior, onde tomáramos as providencias gerais para uma boa performance. Sabendo-se na missão de sanear, o grupo bateu de frente com a crua realidade de um domingo em que se recolhem donativos junto à população para a manutenção da casa. O fato era conhecido de todos os cantantes do SegundaSabado. O público e variado, estão almoçando no local e comprando alimentos, o prato principal e churrasco, algumas atividades ditas culturais ocorrem sob uma lona de circo, com aparelhagem de amplificação contratada para o evento. O grupo havia experimentado cantar com microfones individuais somente uma vez, na abertura dos trabalhos do Mannaz no TELAB-FAP, em março de 2013. O trabalho de amplificação e delicado e exige parceria com um técnico durante os ensaios. Não foi possível viver tal experiência. O risco de enfrentamento de dificuldades nesse sentido causou, naturalmente, insegurança e desconforto aos participantes do SegundaSabado no Cotolengo. Sobre esta vivência, segue o comentário de um dos cantantes:
Os ambientes "doentes" podem às vezes estar sem doenças e nós passarmos algo com nossa carga, mudando o mesmo, porém se realizar com o grupo algo para relembrar e acima de tudo sintonizar com pensamentos e ideias positivas o resultado será perceptível as vezes até mais intenso que no CEIC. Acho que é isso!! Parabéns mais uma vez por sua jornada. (Participante A)
 
                                                                       SegundaSabado - Apresentação no Pequeno Cotolengo (Curitiba/PR) em 05/05/2013 - FOTO 1/6 | João W. Neto
          Averiguei posteriormente que me falta traquejo em ambientação, ou seja, preciso treinar o grupo a enfrentar ambientes hostis se quiser que o objetivo seja vitorioso. Dessa forma aquiesci quando, dos comentários posteriores dos integrantes, veio o desejo geral de atuação sem a pressão de modificar ambientes. Apenas participar, cantar. Considerei o pedido justo e ao mesmo tempo suficiente para permanecer firme na proposta do Mannaz. Mesmo sendo o trabalho, antes de saneador externo, um cuidador dos cantantes, sua função de socialização, encontro terapêutico, relaxamento e meditação bem como formação artística não desabona a proposta. O grupo precisa estar forte, são, para então promover saúde.
          Os trabalhos de criação vocal continuaram a ser realizados aos sábados, agora chamando-se a atenção para sua função canalizadora de energia em futuras apresentações. O resultado desses encontros de criação foi submetido a publico em 6 de julho de 2013
– um Ensaio ao Vivo[1], última atividade do semestre. Nesse dia o grupo batizou duas novas integrantes, fruto dos encontros aos sábados.



[1] Titulo dado por um dos participantes
 
SegundaSabado - Apresentação no TELAB-FAP (Curitiba/PR) em 06/07/2013 - FOTO - filmagem | João W. Neto – da esquerda para direita: Liane Guariente, Igor Henrichy, Elza Ciffoni, Gilson Hack, Fabiane Correia, Camila Moro, Lin Egas, Vicente Lopes e Lucius Savi
Coral da APP
          Um breve histórico: como mencionei na introdução deste relato, o trabalho que realizei junto ao Coral do CEIC em 2010 e o fato de ter permanecido com este grupo até o momento como preparadora vocal rendeu-me futuros. As sessões vocais dirigidas ao Coral do CEIC serviram de convite à intervenção, em 2013, junto ao Coral da APP.
           Fui chamada para fortalecer a projeção vocal do grupo, aprimorar o timbre e o tônus das cantantes. O que encontrei no território das trinta e três professoras que compõem o grupo foi afetividade pura. Esse e o ingrediente fundamental para a proposta do Mannaz. No Coral da APP as três forças que regem a natureza humana estão bastante entrelaçadas: a sexualidade, o apaixonamento e a fusão desses dois processos, que resulta em compaixão-solidariedade. O amadurecimento pessoal destas mulheres confere-lhes ternura no agir e no cantar, ao mesmo tempo em que as idiossincrasias da senectude passam a temperar com humor a conduta de todas durante as práticas, feitas entre risos, respirações amplas e superações. Trabalhar com o grupo tem sido, para mim, como plantar jardins. Rosmaninho e alecrim tornam-se as alegorias do seu canto.  
          Duarte nos lembra
(...) nossa linguagem (conceitual) e importante para descrever os sentimentos, nomeando-os apenas. Assim, a arte seria uma tentativa de descreve-los, de encontrar-lhes formas representativas. Através da arte temos como que uma visão do mundo de nossos sentimentos, temos formas que nos permitem “ver de fora” a inefável dimensão do nosso sentir. De certa maneira a arte simboliza os sentimentos para que os aprendamos, para que os percebamos concretizados em formas que lhe são analógicas. [3]
         Tive a oportunidade de estar com elas em quinze encontros no primeiro semestre as segundas-feiras e obtive excelentes resultados através das sessões de criação vocal. O grupo ainda não se encontrou com os demais participantes do Mannaz, evento este que ocorrera no segundo semestre de 2013.
GMPB
          Por conta dos mesmos futuros, fui chamada ao GMPB em 2013 para colaborar na preparação vocal quando do lançamento do seu livro-CD Terra de Pinho em maio de 2013. Trabalhei com eles primeiramente as terças-feiras e atualmente os atendo as quintas.  O GMPB revelou-se grupo cuja sonoridade desabrochada nas sessões de criação vocal permite as condições ideais de consecução do Mannaz.  Encontrei-me com o grupo em doze sessões, as quais me auxiliaram na formatação das criações vocais, oriundas de excertos de temas da Música Brasileira – que me serviram para a resolução de problemas de articulação detectados . Os encontros entre este grupo e os demais acontecerão igualmente no segundo semestre de 2013.
 Licenciatura em Música da Faculdade de Artes do Paraná – Classes de Canto
          Dentro da programação do curso, onde atendo ao primeiro, segundo e terceiro ano[4], estabeleci um número de horas para os trabalhos de investigação em torno dos diferentes tipos de emissão vocal dispersos pelo mundo e suas aplicações à voz cantada. O referido conteúdo, trabalhado junto aos estudantes de licenciatura em música, viria a fortalecer a proposta do Mannaz. Os participantes nesse contexto fariam as vezes de grupos de comprovação a eficácia das sessões de criação vocal.
            Procedi, a cada sessão, à audição de materiais de diferentes épocas, do Leste Europeu, da Ásia Central, África litorânea[5]. Dei ênfase ao canto da América Latina e cantos correlatos do Brasil, aproveitando-me do auxilio da tecnologia em termos de divulgação da Música Vocal dos diferentes quadrantes da Terra e o costume da comunidade acadêmica de ouvir música por meio da Internet. Destaquei os artistas Martha Sebastian (Musikas), Oleg Fesov, Salik Keita, Silvio Rodrigues e as lavadeiras do Vale do Jequitinhonha, conduzindo os processos de análise vocal por audição do outro-espelho. Antes dessas audições, houve várias práticas com coleta de dados sobre o material que os participantes já dominavam através do canto.
Não somos crianças inocentes vitimadas por um grande mundo malvado. Se nosso mundo é grande e mau, nós o fizemos dessa maneira. Isso é o que o Buda ensinou. O “outro” é um bicho-papão infantil, a projeção de nossos próprios medos em um objeto assustador de nossa imaginação, que nos aterroriza. Nossa ignorância é não ver que nós somos o outro. Não podemos nos permitir confundir inocência com essa ignorância. [6]
          Sucedendo as audições, propus reflexões e práticas que facilitassem a conscientização dos participantes sobre a técnica anasalada, incluindo as sessões de criação, em número de oito.
           Explorei especialmente o modo de cantar pelo nariz e sua ação positiva na ampliação do som vocal, além de diminuição da tensão na região cervical, comportamento favorável à voz do professor – uma vez que o foco do curso é a formação de professores de música. O terceiro ano, que tem alunos do Bacharelado em Música Popular inscritos, um grupo de cinco integrantes, foi a classe que mais soube aproveitar as discussões e práticas em torno do tema. Ali os participantes, não sem dificuldades, dividiram com mais espontaneidade suas experiências pessoais, exercitadas nos grupos dos quais participam (como exemplo, Grupo Omundô[7], Coral da UFPR, grupos de canto xamânico, rodas de samba e choro, trabalho autoral) e correlacionaram tais atividades com a proposta do Mannaz. Do terceiro ano esta-se constituindo um trio vocal, que pode vir a se especializar nas sessões de criação. Surgiu também o interesse desta classe pela montagem de um show, a ser realizado num teatro da cidade de Curitiba no segundo semestre, com a Música Latino Americana como tema. Ainda não se tem registro em áudio do trabalho desenvolvido pelo trio vocal, ação que vem sendo negociada junto à equipe que coordena o Estúdio da FAP.
           Há certo apego, dentre os estudantes de canto da FAP, especialmente os do segundo ano, a maneira de cantar norte americana, difundida através do canto religioso, e mesmo da música de consumo, embora o primeiro ano do curso tenha trazido novidades em termos de repertório – Sambas Brasileiros de Raiz, Música Medieval Espanhola, Música Popular Brasileira. A música de consumo a que me refiro, difundida pelos meios de comunicação no cotidiano, é aglutinadora de “tribos”, ação que possibilita conviver em grupos afins e oferece segurança aos pares, ou sentimento de pertença.
           É possível focalizar subgrupos nas classes de canto da FAP, com interesses específicos, de pouco diálogo e articulação.    A música de consumo é o carro chefe das expressões dentre os cantantes da FAP e não pode ser desconsiderada na pesquisa (o mesmo posso dizer dos cantantes do SegundaSabado). Este material pessoal dos participantes, por mais respeito que se dedique a ele, acaba se tornando um mecanismo de defesa contra elementos novos que a proposta do Mannaz instiga, como a transposição da barreira do idioma, por exemplo (as cantantes do Coral da APP se recusam a cantar em outro idioma que o português).
Que e o Brasil entre os povos contemporâneos? Que são os brasileiros? Enquanto povo das Américas, contrasta com os povos testemunhos, como o México e o altiplano andino, com seus povos oriundos de altas civilizações  que vivem o drama de sua dualidade cultural e o desafio de sua fusão numa nova civilização.[8]
           O comportamento de formar nichos caracteriza a adolescência, mesmo a tardia, fase em que se encontra grande parte da clientela fapeana. Há que se destacar a heterogeneidade na formação de classes na FAP via seleção – Vestibular - que congregam pessoas de diferentes universos, faixas etárias e graus de desenvolvimento humano, um caldo profícuo para o trabalho com as diferenças e as crenças, o que outorgaria ao Mannaz riqueza e criatividade. Um olhar descuidado e persistência pouca, sem falar na coragem dos enfrentamentos e na compaixão, tornam o trabalho praticamente inviável. Várias vezes durante esse semestre eu fraquejei com estes grupos, física e emocionalmente.
Bacharelado e Licenciatura em Teatro da Faculdade de Artes do Paraná
          Com estes dois agrupamentos, oriundos do primeiro e segundo ano, o que encontro e energia sexual pura. Sempre agitados, eufóricos, barulhentos e dispostos a quebrar padrões, ambos os grupos oferecem profícuos materiais para as sessões de criação. Trabalhar com eles e essencialmente divertido e ágil. Com a Licenciatura existe a possibilidade da exploração de instrumentos musicais tradicionais e alternativos, além do uso da voz falada e cantada. Com o Bacharelado vem a tradição dos musicais, muito em voga na atualidade e referência aos estudantes de teatro, fato que forneceu a eles motivação suficiente para atravessarem o primeiro semestre de 2013 cantando Chico Buarque e Kurt Weil dentre as provocações nas sessões de criação.
As sessões de criação vocal
          Segundo Ostrower (1987)[9] o potencial criador e de ordem geral, implica no estabelecimento de funções criativas, como excluir outras realidades a partir de uma realidade configurada. Construir passa a ser destruir. Tudo o que num dado momento se ordena, afasta por aquele momento o resto do acontecer. Surge o problema da liberdade e dos limites. E disso que se ocupa uma sessão de criação vocal e, como  se trata de um  processo de natureza empírica, que se define e imediatamente se dissipa, o conceito Canto Arte nas sessões de criação vocal esta longe de ser compreendido.pelos participantes. Basta pensar que as criações vocais são feitas a partir de materiais supostamente simples, tais como manter notas sustentadas ou bordões, sobrepor acordes, mover diferentes notas sustentadas, que mudam em determinados momentos para o agudo ou para o grave e promovem texturas, células rítmicas repetidas a intervalos justos, que servem como acompanhamento  a excertos de Canções Brasileiras e estrangeiras, cânones, polifonias, sobreposição de ostinatos, harmonização para linhas melódicas dadas, combinações de linhas melódicas sobre notas sustentadas. Estes elementos dependem das sensações acústicas e raciocínios dos participantes em tempo real. Nada e dito durante as praticas e nada e antecipadamente combinado. Apenas ocorre manipulação dos sons vocais, às vezes em profunda sintonia coletiva, às vezes cada participante fechado em seu mundo de som. Terminada a sessão, nenhum registro perdura, apenar o encontro com a Beleza e inefáveis instantes. Somente viver a sessão a explica.
            Tal fragilidade e desapego e o que permite reouvir o mundo e tratar a própria voz no âmbito do aconchego de outras. E despedir-se, em geral ao final de vinte minutos, tempo aproximando de cada experiência, com o corpo e o sentimento refeito de prazer ou dor.
Considerações Finais
           Num primeiro momento, as observações apontam para o estado da proposta do Mannaz, que oferece riscos e vai de encontro à prática de canto trazida das comunidades de origem dos participantes. A rejeição é o primeiro enfrentamento a ser contornado e ao final do primeiro semestre ainda não se rendeu, provocando dissidências importantes, em participantes que transpiravam apaixonamento.
           As sessões de criação, embora soassem bem, romperam com o conforto tribal e instalaram um sentimento de confusão, implícito nos comentários e silêncios das discussões oportunizadas em classe.   Neste ponto de ebulição, entrou a argumentação em torno do canto Arte, contraposta ao canto como produto. E com canto Arte que se pretende modificar ambientes.  No afã de ultrapassar os melindres de invasão de território - entrar na adultez demanda a criação de divisas, e o que a proposta do Mannaz faz e promover a ampliação dessa territorialidade – as conversas e práticas tornaram-se provocativas, instigando o posicionamento dos participantes.
          Mais uma vez pude constatar a importância da vinculação-afetividade nesse processo. Valendo-me da força do trabalho em coletividade, da ilusão provocada pelo canto em conjunto – soa bem em geral, como já comentei - mantive as sessões de criação em funcionamento. Vale reforçar que as aulas de canto na FAP são oferecidas em conjunto, com dez a vinte participantes no inicio do ano letivo, que podem retirar-se caso o trabalho não lhes interesse. O conjunto se sobrepõe ao solo, portanto. No SegundaSabado a participação e voluntaria para membros da comunidade, extensiva a professores e alunos da UTP. Desconheço ate o momento a forma de ingresso ao Coral da APP, bem como ao GMPB.
           Nas avaliações a que me submeti durante o primeiro semestre (que avalio a mim antes de cumprir as obrigações de secretaria) estabeleci algumas questões, a saber: 1 – como as pessoas ouvem a voz cantada – timbres, freqüências, duração dos sons, amplitude, articulação, semântica, significado, arquétipos, estereótipos; 2 – como valoram os estilos musicais do grito a fala ao canto; 3 -  Como reconhecem e deixam evoluir suas emoções; 4 – Como raciocinam o canto, como o domam, como cantam, por que cantam; 5 – Como identificam e interpretam a narrativa no canto; 6 – Como posicionam-se frente a natividade, corporeidade e brasilidade do canto; 7 – Quanto e qual é o desejo de saber sobre o que se canta. 8 – Como aprender a cantar; 9 – Como ensinar a cantar; Como fazer do canto Arte.
Sua Santidade o 14 º Dalai Lama disse que “no mundo secular de hoje, a religião apenas já não é mais adequada como base para a ética… qualquer resposta baseada na religião para o problema da nossa negligência com relação a valores internos nunca poderá ser universal, e portanto será inadequada. O que nós precisamos hoje é de uma abordagem para a ética, que não recorra à religião e que possa ser igualmente aceitável para os que têm fé e para os que não têm: uma ética secular”. Se ampliarmos o que consideramos “ética secular” para além de sua caracterização pelo Dalai Lama, podemos considerá-la como sendo uma parte da filosofia moral. Um especialista em ética secular vê os sistemas éticos como distintos e, por vezes, opostos à ética que é moldada pela orientação religiosa ou pela revelação sobrenatural. Apesar da grande variedade de pontos de vista filosóficos adotados por especialistas em ética secular, a maioria geralmente compartilha um ou mais dos seguintes princípios: que os seres humanos, por meio das capacidades inatas de empatia e compaixão, são capazes de determinar a conduta ética na vida; que pelo uso da lógica e da razão, os seres humanos são capazes de dar origem a princípios normativos de comportamento; que os seres humanos têm a responsabilidade moral de assegurar que as sociedades e os indivíduos ajam de acordo com estes princípios éticos; e que as sociedades devem “avançar” das formas menos éticas e justas para formas mais éticas e mais justa.[10]
          O documentário O povo brasileiro, baseado em obra homônima de Darcy Ribeiro proporcionou, no final do semestre, o inicio do construto teórico do qual carecia a proposta do Mannaz. Deixo, como ponte alegórica e discussão futura a seguinte passagem de Darcy:
 “Com igual furor possesso e sacrossanto, desmontaram templos mais majestosos que os europeus de então, queimaram como diabólicos os mil livros da sabedoria Maia, de que nos restam uns poucos códices preciosos pela beleza, pelo fervor e pela sabedoria que revelam. O mesmo destino tiveram os inumeráveis quipos incaicos. Suas obras de artes, acusadas de serem pecados de idolatria, foram destruídas ou fundidas em ricos lingotes, quando feitas de ouro, prata ou platina.[11]
          Não busco respostas por enquanto, mas a pergunta pertinente a esta tese nascente. O processo continua no segundo semestre de 2013.
         


[1] Mestre em Música pela UFPR. Professora da FAP desde 1988. Cantora, integra Grupo Terra Sonora. Compositora, trabalha atualmente nas produções independentes Cartas a um homem bom e Lenço Namorado.
[2] O termo Mannaz e de origem xamãnica e significa humanidade. Sua simbologia trata da propensão humana para a solidariedade, para trabalhar pelo bem comum.
[3] DUARTE JR. Joao Francisco. O que e beleza. São Paulo : Brasiliense, 3 Ed. 1991
[4] Trata-se da Disciplina curricular Canto Solista 1, 2 e 3, optativa para o curso de Licenciatura em Música da FAP, aberta a participantes cantantes ou instrumentistas. A disciplina comporta estudantes de outros cursos da FAP, como disciplina eletiva.
[5] Vale comentar o mau estado da aparelhagem de som existente na FAP, que não permite audições apuradas, tanto pela localização e condições das caixas de amplificação como pela falta de ambientação e isolamento acústico das salas disponíveis para atendimento dos estudantes.
6Helen Tworkov, em “TricycleThe Buddhist Review, Vol. V”Tricycle’s Daily Dharma, 27 de setembro, 2007
[7] Grupo pertencente ao Projeto Musica dos Povos, em funcionamento na FAP desde 2003 sob a direção do musico Plínio Silva. Este projeto e vinculado igualmente a Coordenação de Extensão e Cultura da FAP. Colaborei como preparadora vocal no projeto de 2003 a 2012.
[8] RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro- a formação e o sentido do Brasil.  São Paulo: Cia das Letras, 1995.
[9] OSTROWER, Faiga. Criatividade e processos de criação. Petrópolis: Vozes, 1987.
[10] http://equilibrando.me/2013/04/13/o-que-e-etica-secular
[11] RIBEIRO, Darcy. A América Latina existe? Rio de Janeiro:  Fundação Darcy Ribeiro, 2010

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