Fósseis, fácies
Estava mais para pista que para fóssil. O sapato de cano alto guardava dentro o esqueleto de um pé masculino. Não havia para que supor. Talvez eles fossem, mesmo, paleontólogos de meia tigela. Sem esmorecer, Aurélio deixou a imaginação aproximar um teiuguaçu de uns dois metros, dentes pequenos e pontiagudos. Quem sabe escassez, talvez raiva, a criatura partira a perna do adversário na altura do calcanhar. Esses homens arrogantes, tomou o merecido. O sapato, datado pelo caminho da arcada, muito uniforme, coisa de cento e cinquenta anos da ocorrência, pediu alguma intenção póstuma. O rapaz resmungou por longo tempo com o artefato nas mãos. Na pesquisa atual da equipe, sem insumo do PROASNE[1], não havia necessidade de respostas, sequer perguntas, não haveriam de prestar contas sobre seus triunfos ou fracassos, tampouco havia público sádico a querer denegrir sua reputação. Se fossem, os três, encontrados na mata do Riacho cento e cinquenta anos adiante, somente três pés de sapatos e três restos de esqueleto, pouco se diria a respeito. Ou nada. A aparente liberdade do dever lhes permitia voos criativos. O ideal, primeiro, preservar todos os tipos de vida, garantir a vida da água no planeta. A consonância entre vítima, vilão e aquífero subterrâneo viria, o tempo era amigo.
Aurélio deixou o achado sobre a escrivaninha, devidamente acondicionado, também os dois colegas, em sono profundo, e saiu para o corredor. Os moradores, dali a pouco, concluiriam a sesta. Tudo bem quieto, exceto pela chuva grande a escorrer dos telheiros.
Sentada ao lado do vaso de plantas, Adele espiava Gilseu com sutil encantamento. Já vira lagartos antes, mas aquele tom de verde da pele do animal a deixava perplexa. O que mais a chamou foram os olhos. Como afirmar a ausência de sentimentos? A moça verdadeiramente esperou que o animal falasse com ela. Queria respostas para um milhão de perguntas, todas inúteis, mais os dias se empilhavam uns sobre os outros. Aurélio poupou a mulher de mais um turbilhão, sem o saber. A forma como ela implorou companhia, um único piscar, fez Gilseu mover-se para a cozinha, a tomar ares, não tinha intenção de testemunhar ato algum. Invisível, feito camaleão, o animal mergulhou pelas escadas e logo estava ao pé de Guairacã, que lhe coçou a cabecinha e o deixou em paz, não sem antes ganhar um ovo inteiro, oferecido em plena boca.
Os primeiros movimentos da pousada, livres do dilúvio de fora, foram tímidos e se limitaram à sala, onde havia mesa posta para sucos e biscoitos. Jica deixara, sobre um console, um baralho, uma caixa de gamão e outra com um quebra-cabeças antigo. Havia superfícies para armar os três jogos.
Embora amuado, Aurélio aceitou se juntar aos colegas para uma tertúlia. O violão grave de Eurico deu ao trio base vigorosa, que lhes permitiu várias improvisações. Naquele final de tarde, a valsa canção pareceu a melhor forma a soar, transcendia o mero entretenimento. Gaudêncio e Juvenal, afeitos ao bailado, dançaram primeiro com Jica. Fátima, sutil em suas nostalgias, logo revelou um modo de pinicar os pés no assoalho que, se se podia dizer assim, tocou fogo ao coração do velho estalajadeiro. Guairacã se pôs a valsar com o grupo, alegre como há muito não se via. Não demorou muito para que as freiras parassem de enxergar demônios onde havia elementais satisfeitos. Por intermédio delas, uma roda se formou e quase se esqueceram do jantar. Os pares se alternavam no centro da roda, acompanhados por palmas e caloroso incentivo.
Acostumada aos movimentos de domingo na casa, Jica havia adiantado um belo caldo de peixe, que combinou servir pelas vinte horas. Nenhum conviva ousou tirar uma freira ao centro, o tabu cantava mais alto; as moças se contentaram com os volteios em seus lugares na roda. Nenhum conviva insistiu para que Adele se juntasse a eles.
Após o jantar, todos participaram das arrumações da cozinha e da sala, Jica e Fátima agradecidas, por poderem desfrutar do final do arroz de leite. O grupo estava convicto de que a hospitalidade da Pausada do Riacho excedia as expectativas. Por um lado, isso era bom para o espírito das trilhas. Por outro, poderia dificultar o desapego. Os dias, fluidos, incitavam o convite da partida. A nenhum dos hóspedes Guairacã aplicara a lei, que consistia em receber o estrangeiro, o diferente, o novo, oferecer-lhe comida, bebida, banho, abrigo, sem nada perguntar até que se vissem saciadas as necessidades. No dia seguinte, caberia perguntar a cada um, a que veio. Disso dependia a saúde do Riacho.
De pé de orelha, com Zé Tônico
Conto meu causo, (lhe) peço instrução
O burro, manso, meu velho amigo
Convida à vila, no Bom Rincão
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