sábado, 25 de outubro de 2025

Guairacã 10





10 – Rosário de Lulé

 

O trabalho de um contador de histórias é como um calango sob o vaso de plantas. Observa, tem ao lado uma caderneta e espera novos pedaços de batata crua e ovos, a cair em sua boca como que por encanto. Um carinho na cabeça também serve. Desde que o barulho da roçadeira se restrinja ao jardim, o animal segue imóvel, inerte, frio. O mesmo ocorre se a moça triste surge do nada, senta ao seu lado e assume a mesma imersão. O contador de histórias suspira, relê as páginas e dá com a mão esquerda na testa. 

 

O contador de histórias gesta seus personagens das funduras dos olhares. Podem ser os seus, refletidos em cacos, o que é mais comum, ou as extraordinárias expressões das retinas vizinhas, disponíveis a quem faz contatos visuais verdadeiros. Para algum leitor, pode ter chamado a atenção nascerem, para esta narrativa, os doutos Juvenal e Gaudêncio. Rapazes dedicados aos estudos, estavam à cata de cordelistas que dariam tom a sua tese. Ao entrarem na Pousada do Riacho Guairacã viu, nas pupilas dilatadas deles, dois lavreiros de narval, Otaviano e Álvaro, portugueses do Algarve, com quem lidara nos mares do norte. Aqueles tempos de pesca e perigo, Guairacã tinha o cuidado de os afugentar do pensamento. Sempre que se dirigia aos sulistas, o bandeirante precisava corrigir a saudação e prometia, toda vez, contar-lhes seus arroubos de Júlio Verne.

 

Ao perseguir o olhar daquele personagem, o que entra em cena e muda todo o curso dos acontecimentos, o contador de histórias sofre. Ele poderia dizer que a comunidade ribeira ainda não permitiu acender esta luz. Por ora, era ir apresentando este ou aquele sujeito, mais ou menos afortunado, mais ou menos fadado, mais ou menos enredado na trama. Se fosse dom, o premiado alumiaria a página. 

 

Fátima, a lisboeta, trouxe na bagagem livros e notícias para Guairacã. Tratava-se de um compilado de poemas obituários, em três volumes, escritos pelo finado Mariano Lole, para um folhetim da capital. Outra amizade antiga, dos tempos em que Guairacã fazia seu desjejum em uma pensão, a Flor dos Cavalheiros, na cidade de Lisboa. Foi lá que o velho bandeirante testemunhou o enfarte de um homem, diante da xícara de café. Viu também o prestimoso socorro, prestado por Lole à vítima. Naquele mesmo dia, Guairacã tomaria um navio para o Brasil. Não mais perdeu o contato com aquele poeta estranho, amável e um tanto sinistro. Até perder.

 

Descansa em paz a minh’alma

Nas espumas de Portimão

Afortunada, mar de manto

consolou meu coração

 

Santinha das minhas chagas

Montada em um burrico

Eu te vi, praia distante

Vou para ti; aguarda 

 

A irmã Letícia, pela manhã que raiava no Riacho, puxou o rosário. Não era seu costume, preferia sussurrar à Mãe seus pensamentos de menina, enquanto Juanita impunha ritmo às contas. Arrependia-se, por ter deixado o mundo para trás duas vezes. A família, na casinha de Jericoacoara, foi seu primeiro adeus. Montada em um burrico, adornada por uma mantilha azul que lhe cobria os cabelos, quis o encontro com a luz, que vira mais para sul. Para os pais, uma santinha. A mente pregara-lhe alguma peça. No caminho para esta luz, desenvolveu episódios epiléticos leves, invariavelmente socorridos por passantes amáveis. Por conta da aparência, era ao padre da localidade que a levavam. Assim é que a menina, pelos dezoito anos, acabou internada em um convento, onde encontrou Juanita e Magda. No derradeiro episódio que sofreu, Letícia rezava as vésperas, entre suas inseparáveis companheiras de cela e fé. As noviças tiveram permissão da abadessa para acompanhar a doente ao centro médico, ala psiquiátrica. 

 

Em revolucionária atitude, já recuperada a irmã Letícia, Magda propôs que as três não voltassem mais à reclusão. Destemida, missioneira por vocação, Magda sonhava a oportunidade de servir em alguma comunidade ribeira, tratar de gente, precisada de sutura, cataplasmas e um pouco de religiosidade. Embora o dinheiro que tinham, pouco, fosse do convento, consideraram usa-lo para bilhetes de viagem, somente de ida. Eis o segundo adeus. Foi então que Letícia conheceu Juvenal, no pronto socorro da psiquiatria.

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário