quinta-feira, 21 de agosto de 2025

Guairacã 8

 







8 – Compromisso

 

 

No episódio anterior, deixamos dona Fátima, a lisboeta, mais a Jica Lisberta aboletadas com panelas, chaleiras e arroz de leite. Quem se chegou a elas, pouco antes do almoço amansar, foi Eurico paleontólogo. Não, não tinha fome, um suco de seriguela caiu bem. Naquele léu e créu da pousada, ele ficara por redigir as anotações de campo. Trazia consigo, dentre outros objetos, um pé de sapato dentro de um saco plástico, a ficha de identificação no sobrescrito. Uma papelama, presa por barbante, um caderno de espiral laranja, um lápis apontado a canivete, um lado azul, outro vermelho.  O moço, mais do baixolão que da Pangaia, sonhava algo inusitado. Sabia da riqueza que catalogavam, o quão úteis eram as descobertas que teciam. Uma paixão secreta, a cantiga portuguesa. Sentou-se no batente da cozinha que dava para o quintal, sem cerimonia. Sacou do pinho, que buscara na estação de trem naquela manhã. Colado ao peito, de tão grave, o baixolão lhe deu um ar borracho. Eurico, muito belo com seu nariz adunco e sotaque desconhecido, sussurrou, a voz pequena. 


Ao sair de "dei" perdi um dedal,

Com letras que dizem: "viva Portugal"

Viva Portugal! Viva Portugal!

Ao sair de "dei" perdi um dedal!

 


Fátima, olhos compridos, talvez lampeiros, ecoou a quadra. Jica, a linha estirada, anzol engatado no xaréu, seguiu de colher a girar o arroz, estava tudo quase no ponto de servir. Gostou na hora daquela cantoria e achou bom que não fosse o Jordano paleontólogo, havia de enciumar. Sem descuidar do ofício novo, a contracantar, Fátima foi à copa, enfeitou a mesa com um pequeno arranjo de mãe-de-milhares. Alinhou pratos, copos, guardanapos sobre toalha de bilro. Jica veio logo atrás, a empunhar panela de barro fumegante. Para beber, havia água do poço duas vezes ferventada, suco de graviola e leite, também de seriguela. 


Os outros hóspedes foram lavar as mãos, primeiro as freiras, depois o moço ex detento, depois os acadêmicos do sul, depois Garnizé. Veio um casal da vila filar a boia, famosa na região, bodas de prata deles. Com o restaurante de vinte talheres, Guairacã podia pagar ordenado de gente a Jica. O estalajadeiro ia anotando, no quadro de giz que dispunha na calçada, quantos convivas estariam naquela tarde. Quando chegava o vinte, refeição somente no dia vindouro. Jica guardou as porções, generosas, para Aurélio e Jordano, que se demoravam nas andarilhações.

 

O aroma da refeição, os ecos da cantiga. Gente reunida, sem saber ainda o que une, atrai. Sagrado. Algo de bom há em mesa posta, em encontro entre sotaques lngínquos. No ar, na madeira aplainada, nos pregos que mantém a mesa ereta, no centro da sala, cheiro de chuva por cair, acre. Sagrado. O sangue a correr pelas veias, um rugido interno a anunciar apetite e vontade, gemido livre nas vias úmidas de fruta colhida no pé. Sagrado. Não era devaneio de ninguém que aquele acordo coletivo tomaria ares de celebração. Hospedaria tinha seus encantos que, em geral, duravam o tempo da estada. Ali, um suspiro de futuros se via, no vão de flecha envenenada. Sagrado. Quieta no seu canto, dona Fátima espiava cada rosto, cada ai após uma garfada. Jica conhecia o estômago humano. As duas cederam, de bom grado, lugar aos dois meninos da Jeruza, foi saberem do arroz de leite e viraram em dois cabritinhos até a mãe deixar almoçar no seu Guairacã. Ninguém queria as lombrigas atacadas. 

 

Quem primeiro puxou prosa foi Otaviano, professor de literatura comparada nível um. Foi direto ao ponto e perguntou sobre um autor recomendável de cordel na região. Um silêncio perfilado e logo dois nomes vieram, Patativa do Assaré e Ariano Suassuna. A Jica lembrou-se de Bráulio Bessa. Anônimos, moradores do Riacho, pelo menos cinquenta cordelistas, entre solteiros, casados, dos que moldavam seu próprio papel, foi a Jica quem informou também. A pergunta, feita por Otaviano, vinha não de não conhecer o material, mas em atenção aos leitores, o objeto da pesquisa. Otaviano tinha em mente entrevista semi estruturada, jogava o verde para colher maduro e um pouco para se mostrar. O colega, Álvaro, torceu o nariz. 

 

Os seres das águas não se rendem, arrumam seu jeito de exigir atenção. Uma tormenta assombrava o início daquela tarde. Poderia intentar a mata e sair de fininho, sem ruído. Era esperar. As freiras, que se alimentaram feito passarinhos e não provaram o arroz de leite passaram, agarradas uma a outra, diante do baixolão encostado à parede, na cozinha. Tiveram curiosidade, pelo som, pelo instrumentista. Eurico, ainda a saborear a sobremesa, olhou aquelas meninas e sentiu frêmitos de tocar para elas. 

 

Sentadinho na sua cadeira ao lado do fogão, Guairacã fingia dormir. Algo de dengoso, em meio ao vento forte subia, desenhava o delta. A chuva, nada de cair. Na garganta, o caminho das frutas. 


A água pura deu satisfação ao trato digestório de Aurélio, cismado diante do sapato e da bica. Tão velho aquele artefato, como as terras daquela terra. Outras satisfações, tão poucas, tão fundamentais e urgentes o faziam pensativo: e aquela moça tão pálida, a vestir preto naquele rincão? Qual história haveria de imaginar? Qual um dois três e o gato, telhado, janela, legião estrangeira? As pedras, caixa e servidão? 

 

Guairacã, suspenso entre a terra e o raio, pensava no que fazia, afinal, aquele bando de bandeirantes, acolhidos junto à cachoeira. Onde a Paraíba? As freiras? A mulher obesa de Lisboa, os profissionais? A moça de preto? O réu inconfesso? O dono do catajeca? A Jica, o Jordano das cordas agudas? Qual um dois três e o Gilseu, lagarto imóvel sob o vaso de que planta? Sagrado. Algo de bom há de haver em cada abrir de invernada, micro ônibus encostado na calçada, tarde ensombrecida, um arquivo onde se vê notas em azul, monossílabos e hipérboles. Até onde se vai nas escavações ? Até onde se chega, na certeza da psique mensageira? No amor que não vinga, na empatia corda-bamba? Saberia um dia, o velho bandeirante? Até onde o respeito aos fósseis? A quem interessar possa? Qual testemunho, exemplo? Sim, a tarde não chovia, era sexta-feira de arroz de leite, ou será domingo, o tempo não pararia, calma, turvo, cultivado no ranger da cadeira, no soprar teso, no cheiro de café a esturricar no coador. Guairacã agradeceu o compromisso com a pousada, rincão lembrado de Deus. 

 

coração, rio

verso vertiginoso

o olho adamastor

 

coração, rio 

Fonte da Corredoura

segue seu curso de amor

 

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