segunda-feira, 21 de julho de 2025

Guairacã 7



7 – Joia das joias

 

 

Já passava das oito, manhã friinha, primeiro dia de inverno. No ar, a umidade de uma chuva esperançosa, o sol tímido a abraçar de luz as árvores e os pássaros. Um casal de anambé-de-asa-branca, atarefado, colhia frutas na mata de tabuleiro. A comprovação de que a espécie era essa, a lisboeta tinha no cordel de viagem que lhe vendeu o condutor do ônibus, o senhor Garnizé. As frutas, amarronzadas, levadas no bico aos filhotinhos, postos em ninho simples, nos galhos, não muito longe da cachoeira, de ingazeira se pareciam. Um zumbido curioso se ouvia, a cada voo do casal, quase hipnótico. Assim, a senhora portuguesa deu luz aos pensamentos, despertou.  Um morador fazia tinir seu martelo, várias casas além da pousada. Há muito que os humanos deixaram de guardar domingo, Fátima refletiu, diante da janela de seu quarto. Sentiu uma saudade injustificável do marido, o finado José. Haveria gatos, haveria livros de Inês Pedrosa ou Lydia Jorge naquele fim de mundo? Quem conheceria Miguel Torga naqueles confins? Pois, se deixara Lisboa para redimir-se, por que tanta falta lhe fazia? O Tejo. O Rosário. A Igreja de Santo Antônio. A enfermeira Matilde.  E agora, a mata de tabuleiro.

 

excursão, com que Fátima viera desde Pitimbu, havia saído para conhecer o vilarejo, inclusive as três noviças, grudadas umas às outras. Felizmente, não havia obrigação de estarem juntos os passageiros. A senhora se mantivera muda e calada, a olhar pela janela durante a viagem, parecendo mais distante que em alto mar. Sorriu para as meninas rezadeiras vária vez, não passou desse cumprimento. Sua experiência com os homens portugueses não lhe devolveu a jovialidade após o luto, ao contrário, mais retraída se encontrava. Dos da nova terra, somente o estalajadeiro lhe chamou a ver e, mesmo assim, com reserva. Ah, o rapaz com o violão contra o peito, o que cantava temas pastoris. Nem de longe, a senhora fazia papel de viúva inocente, não lhe convinha. Há que se pensar, cedo para escancarar a alma de um personagem, precoce, desleal atitude, da parte deste que lhe escreve. Deixemos madurar, espontaneamente.  Mergulhada nas suas doçuras, a lisboeta voltou-se para o interior da alcova, foi até a  maleta e retirou dela um velho vestido laranja, com margaridinhas, curto, decotado em demasia e meio transparente. Nem sabia que o havia colocado na bagagem. Vestiu-o assim mesmo, embora as inconveniências. A simplicidade daria conta do que Fátima pretendia fazer do tempo, ao menos naquele domingo. Ao olhar a Jica antes, toda atarantada com os petiscos do café, perguntou se poderia ajudar com o almoço. Jica, sem se fazer de rogada, confiou na mulher que lhe estendia mãos pequenas, gordinhas, e também uma amizade duradoura. Andava precisada de atenção, a faz tudo do velho Guairacã. 

 

Imprudente. Foi assim que Jica cantou, sobre a panela do feijão verde, ao ver Fátima adentrar seu santuário. Com a rapidez que não tinha, a faz tudo estendeu à senhora um desses aventais que cobrem frente e traseiro, à maneira das cuidadoras de creche. O azul marinho ornou com o laranja e apresentou melhor alguém que pretendia servir pudicamente. Passe mágico, logo as duas mulheres se irmanaram nos cortes da macaxeira, sem derrubar uma sequer, no levantar a chaleira enorme e fervente, no sal, no queijo coalho, cebola e coentro. Arrumadinho, o prato que Jica escolheu para a mesa daquela tarde, em que os convivas voltariam da caminhada famintos. Arroz de leite, para dar o doce ao entardecer, foi a sugestão de Fátima. 

 

Papel engavetado 

ciberespaços 

prateleiras 

de antigas livrarias

 

 

Algum índio despido

Tibira, um arpejo

Vestido alaranjado

canto canoeiro

 

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