O sumiço da marré dessi
Carmencita del Mar, o nome de uma das ricas de marré dessi. Sentou-se ela, vencida, ao meio fio, diante do sobrado. Estávamos no Beco da Corvinha. A manhã quase se despedia, soturna e fria.
Há cinco dias, as autoridades andavam a procurar por Anunciación Lunar, a mulher com quem Carmén dividia a vida. Alguma doença, dessas de esquecer, fizera Aní ganhar as escadas sem ser vista. Embora fossem, as marré dessi, muito populares na Alfama, todo morador fazia questão de não as ver, qualquer delas, ou saber de sua passagem, a que horas, por qual motivo. Os guardas civis não ofereciam esperança. O mundo perdera toda razão para Carmén.
No mesmo instante em que as coxas da alcoviteira se apoiaram, desavisadas, sobre suspeita poça ao lado do hidrante, Fátima pôs sua face rechonchuda à janela. Vinha molhar seus jacintos e ervas-de-gato. Deu pela vizinha espalhada e sentiu urgência. Levaria dez minutos para vencer os lances de escada. Então sua voz trauteou Helena, Helena arrebatada de Troia. A moça deu a face sorridente pelo lado oposto, e era tão perto que, estendidos os braços, se podiam tocar. Fátima somente apontou a calçada e Helena, de pronto, ganhou a rua e se achegou, mimosa como era, logo a soerguer a senhora magérrima e chorosa.
O vestido tinha uma nódoa de urina de cão e outra coisa, de cor indecisa. Fátima fez sinal para que subissem. Carmén, atarantada, acedeu aos movimentos das outras e permitiu uma nudez completa. A ducha caiu macia sobre aquele corpo que nada mais tinha além de pele, ossos e abandono. Um sabão de lavanda francesa deslisou aqueles aclives e declives com carinho e presteza. Logo, Fátima interrompeu o enlevo e envolveu a senhora em toalha macia. Helena já lavara e estendera as roupas à janela, custariam a secar. Uma dose generosa de passiflora, acomodação do espirito em a cama que fora de José e Carmencita del Mar rendeu-se ao sono.
Fatima não falava com Helena há justos cinco dias. Depois do episódio da foto com a mãe no vaudeville, algo entre as duas se magoou. Agora, unidas pela caridade, reacendia-se o luzeiro da doçura e aquele algo mais, sonhador e reticente. Sossegado o ambiente, frio a entrar pela janela, estavam as mulheres diante de um travesseiro açucarado e chá de anis. As duas pensaram juntas, contatar Mariano Lole. Quem sabe ele, em seu obituário, pudesse ao menos permitir um adeus a Aní, se confirmado o passamento. Alguém, naquele Portugal, meu tesouro, haveria de ter posto os olhos em uma andarilha ressequida e só.
E assim foi. Helena digitou o número no telemóvel. Lole abriu a convocatória.
Madre de las mareas
sálvame
Madre de la canción
te llamo
madre del perdon
Ayuda
Madre de las mareas
Alcanza
Luna de Raymond
Luna de Marilia
La luna de Clara y Bela
Luna normanda
Madrid
luna de ojos oscuros
luna en mis ojos
Luna, te perdí
Protege mis encantamientos
lo que vuelve a mi
Cara de Melaos
Cómo estás
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