segunda-feira, 29 de dezembro de 2025

Guairacã 12







12 Meados

 

 

Mais dois dias e o catajeca seguiria para outra rodoviária, assim fora contratado. Garnizé sempre ia mais vazio do que chegava nos retornos de excursão. Sentia-se borboleta, a por seus ovos e voar. Dessa vez, era quase certo que os passageiros ficassem no Riacho, aquele lugarejo esquecido e achado. Eram gente sem eira, sem beira, com algo de decência. O homem não quis apressar rio algum. Saiu cedo, foi lavar-se na cachoeira, mais dolorido na coluna do que era comum.  

 

Lá, encontrou Adele. A moça vestia uma túnica branca e estava nua por baixo. Era tão magra que não inspirava olhares luxuriosos. Ela olhava para uma pedra, longe o suficiente, sem piscar. Um lagarto olhava na direção dela, sem olhar. Media, o réptil, uns dois metros, parecia pesado, a aproveitar o sol que nascia, imóvel. Um caderno de desenho descansava no colo da moça, o lápis a diluir-se em um movimento dengoso na mão esquerda. O bicho recebeu um nome, desenhado sob sua representação. Alfeu.

 

Garnizé, dos dias em que conviveu com a estranha trupe, sabia que era melhor manter, daquela moça, a mesma distância que o lagarto elegante se permitia. Seguiu um pouco adiante, onde poderia ficar de calção sem ser visto. Guairacã já havia lhe falado da flora, da fauna do lugar, que não representavam riscos, a menos que o freguês fosse se meter onde não era chamado. Aquele lugar que escolheu, Garnizé já estivera por ali. Pôs a cabeça sob o braço fraterno da cacheira, sem pesar. Mais um pouco e ficou em pé sob a ducha revigorante. Inclinou as costas, para que a água fizesse o trabalho com a dor. 

 

Que inconveniente havia, caso decidisse ficar, ele também? A casinha no final da alameda era pequena o suficiente, grande o suficiente. O aluguel, simbólico. Fizera camaradagem com Seu Ademar, carpinteiro, viúvo há seis meses, sem intenção de outro par. Um amigo parecia mais acertado que outra mulher. Ali, Garnizé refletiu, se poderia ter um cão, dividir um pito, uma cerveja, que os dois iriam tomar lá com a Jica Lisberta. E também havia a dona Fátima, a primeira que avisou que dali do Riacho não mais sairia. Garnizé levaria gente do lugar para as rodoviárias circunvizinhas, a piqueniques, arraiais. Traria gente à Pousada. Ainda tinha tempo para aconselhar-se. Quando o corpo esteve vivo o suficiente, o motorista do catajeca deitou em uma pedra, lagarto humano. Esqueceu, dormiu.

 

Havia aqueles para abraçar, outros para convidar a seguir rumo, outros, a flecha rezaria. Era olhar o marco do Riacho, a contar três mil e duas gentes, se era bom acolher mais nove. O velho Guairacã segurava um bastão que lhe servia de bengala, diante da placa de bem vindo. Tinha parado o objeto sobre o ombro esquerdo, no início da alameda, onde o lugarejo fazia a bifurcação para Pedra do Ingá. Ali, parado, ele se deu conta de que não era Deus. Era um cisco no olho de Deus, com certo carinho. Não podia ele atar ou desatar o progresso, o poder de escolha dos outros. Andava muito habituado a esvaziar logo a Pousada, tornar aos monólogos com Gilceu, refugiar-se nos cheiros de almoço da Jica. Nada impedia daquela arenga persistir, mesmo que a casa permanecesse cheia. Fungou e voltou para a Pousada. Juanita não lhe saia do juízo. 

 

Gilceu, sempre imperturbável, havia se deslocado pros lados da cachoeira. Espiava, tímido, o amigo que agora tinha o nome de Alfeu. Viu o lápis a dançar, hipnótico, nos dedos daquela dona que todo dia gastava um tempo ao seu lado, no corredor da Pousada. Um golpe de mestre, ele atravessou a perspectiva da mulher e foi logo enquadrado. Freneticamente, Adele começou a registrar a presença do amigo verde, a murmurar coisas doces, num idioma tão elegante que só Aurélio pode compreender. 

 

A magreza não era motivo para que o paleontólogo desviasse os olhos das pernas, braços, do seio quase descoberto, dos lábios que se moviam sem som. Ele estivera sob uma ingazeira desde a madrugada, não pudera dormir, por conta do enigma do sapato de cento e cinquenta anos. Discreto, o rapaz não foi descoberto. Viu Juanita chegar primeiro, viu o velho Guairacã encantado, viu Adele. Ela não era nenhuma Perséfone, ele tampouco tinha pendores para Hades. Já haviam se cruzado algumas vezes, nenhum dos dois em posição antagônica. Não falaram, é certo. Também não olharam um para o outro. Ela, naquele mundo dos melancólicos; ele, com as pedras que devem rolar. 

 

Juanita seguia a rezar, alto o suficiente para se ouvir amarrei um fio vermelho no tornozelo d’Ele, a ver se o aproximo, de volta ao solo, para junto das bizarrices das quais Ele se compadece. Vem me tomar em seus braços, Resedá, que me sinto só. Está tudo bem, eu sei. Qual santo fez hoje a homilia iluminada? Qual pastor de ovelhas entoou água e chamas? Qual orvalho, sombra? Qual silêncio? Qual cirurgião concluiu seu apêndice supurado com êxito? Qual sanatório teve manhã sem tiros? Ah, escumilha das escumilhas, tem compaixão. 

 

Aurélio, mais ouvia a cantilena de Adele, mais lhe descia pelas pernas uma mornidão perigosa. Humanos amontoados, pateticamente amontoados, coitados del’s, bando de asteroides, caídos no solo silvestre das cidades por nascer. A velha Sael não é, nem de longe, os verdes água de Kiol e é bonita, torpe e bonita. Não conheço Ionesco. Temo que a palavra dele é meu próprio hangar na Caledônia,  o sal de Cartago. As cadeiras[1].  Que tal enveredarmos, lagartos, por um desses rabos de galo do céu, a ver se encontramos o gineceu amarelo? Deixamos ele sem dormida por um mês. 

 

O movimento do lápis deu em Aurélio. A moça trepidou. Alfeu entrou na água, Gilceu se mandou. Garnizé deu consigo já bem seco, vestiu as calças, mal abotoou a camisa, calçou as alpargatas sem calçar e saiu logo, como se lhe picasse a muriçoca. 

 

Quem ficou em seu lugar foi Juanita, sem piscar. Algo de transe.

 

A noite vem chegando, Menino Leo

Mais um dia que o Universo te deu

Sou alguém de longe, viajante

Venho em nome dos camafeus do céu

E também da Terra, do mar

Que em todo lugar tem pelo menos um

Pra aliviar as canseiras

Os sustos

Pôr luz

No caminho de Leo

Do copo d’água

Leo da colina loura, Leo do copo d’água

 

 

 



[1] Peça de Eugene Ionesco

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