sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

Contos de Malhas e Mourarias 12




Tudo que nasce tem fim... e recomeço

 

 

Os dias mais bonitos apareciam anotados, frases curtas, palavras indicativas, algum fato, alguma emoção. Para deixar exemplos, no dia 9 de janeiro, a caderneta preta menciona faz seis meses que Zezito partiu. Já no dia 2 de fevereiro estavam belas as bandeirinhas no Largo do Chafariz de Dentro. No mesmo dia uma lufada suspendeu a barra do vestido e estive meio nua para todos. Na noite daquele dia escutar a Sofia Ramos deu-me dor. No dia 15 de março faz-me falta o pinicadinho dos pés sobre o assoalho. No 16 li no obituário que Aní vaga pelos arredores, alguém a viu adentrar à Ponte, mais perdida que eu.

 

Não sabemos se mentira visitou a infância de Fátima, e poderíamos ser prestimosos com ela, explicar as fantasias de criança, sua prodigalidade em aumentar pontos em histórias com muito nexo, o que pode causar confusão ao cotidiano. Por esta razão se recomenda, que tu dês ao filho uma caixa de lápis, bem cedo. Há uma chance de nascer, deste encontro com o grafite, acrescida uma pitada de amor familial, um bom comunicador. Em aquele preciso instante, diante das ladainhas sombrias de Mariano Lole, Fátima se deu conta de algo seu.

 

Mariinha Donis, ex acompanhante para homens com alguma graduação, deu a Cristino Santana a informação de que ele precisava e também seu cartão de visitas, amarelo maré. O homem, saído de um auto com chofer, conduzia uma senhora magérrima, um tanto maltrapilha e transtornada. A dama fora encontrada a perambular, a meio da Ponte 25 de Abril. Chorava e pedia por uma Carmén. O chofer, acostumado a casos de ideação suicida e outras mazelas de trânsito, inclusive o transporte de gente morta, se opusera a parar, inda mais em uma ponte. Sem perder a elegância, Cristino só disse e se fora a tua mãe, a voz suave e hipnótica, que não permitiu réplica. Bastou, para um resgate relâmpago, quase um rapto. A mulher debateu-se por algum tempo. Rendida pelo cansaço, frio, fome e medo, pode então balbuciar, vivia em Alfama do Mar, perto de uma casa que fabricava travesseiros açucarados. Depois de repetir Carmén várias vezes, foi vencida pelo sono. O chofer, ainda amolado com a situação, terminou por apiedar-se. Entendeu que seu cliente identificara na senhora uma avó, a mãe, uma parenta. Seguiu então em direção ao Largo do Chafariz de Dentro ou qualquer lugar, no perímetro, onde fosse permitido acostar o auto. Era temporada de turistas aos borbotões. 

 

Cristino teve alguma dificuldade para despertar a senhora, já nas proximidades do Museu do Fado. Aní assustou-se, mantinha-se atônita. Ainda mais insinuante, o homem terno propôs a ela caminharem devagar, até onde estava Carmén. Antes, quem sabe, um prato de sardinhas e batatas, uma ginjinha. Tocada nas fibras mais profundas, Aní foi saindo do autocarro com certo desprendimento, ir com um homem bem apessoado fez-lhe bem. Além da gorjeta, Cristino deixou um pouco mais de euros, para que o chofer higienizasse o interior do veículo e não tivesse prejuízos com a futura clientela. Vencidos muitos lances de escada, foi Mariinha quem abreviou a aflição de Anunciación. Apontou, galanteadora, a Pão Nosso d’Alfama de onde, naquele exato momento, Fátima saia a braço com Helena achada de Troia.

 

Como aumentar em um só ponto os Contos de Malhas e Mourarias? Se havia tanto encontro e desencontro para ajustar? Mesmo que o cenário mude, vá dar ao interior de um país filho do progresso, ainda se poderá saber do desenvolvimento destes informes pueris, lembranças de caderneta preta. Dos gatos de Fátima, ainda não se tem notícias. Entrou por uma porta, saiu por outra, D. Anfonso X e sua corte poético-musical que nos conte outra. 

 

 

 

 

 

quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Contos de malhas e mourarias 11




O sumiço da marré dessi

 

 

Carmencita del Mar, o nome de uma das ricas de marré dessi. Sentou-se ela, vencida, ao meio fio, diante do sobrado. Estávamos no Beco da Corvinha. A manhã quase se despedia, soturna e fria. 

 

Há cinco dias, as autoridades andavam a procurar por Anunciación Lunar, a mulher com quem Carmén dividia a vida. Alguma doença, dessas de esquecer, fizera Aní ganhar as escadas sem ser vista. Embora fossem, as marré dessi, muito populares na Alfama, todo morador fazia questão de não as ver, qualquer delas, ou saber de sua passagem, a que horas, por qual motivo. Os guardas civis não ofereciam esperança. O mundo perdera toda razão para Carmén. 

 

No mesmo instante em que as coxas da alcoviteira se apoiaram, desavisadas, sobre suspeita poça ao lado do hidrante, Fátima pôs sua face rechonchuda à janela. Vinha molhar seus jacintos e ervas-de-gato. Deu pela vizinha espalhada e sentiu urgência. Levaria dez minutos para vencer os lances de escada. Então sua voz trauteou Helena, Helena arrebatada de Troia.  A moça deu a face sorridente pelo lado oposto, e era tão perto que, estendidos os braços, se podiam tocar. Fátima somente apontou a calçada e Helena, de pronto, ganhou a rua e se achegou, mimosa como era, logo a soerguer a senhora magérrima e chorosa. 

 

O vestido tinha uma nódoa de urina de cão e outra coisa, de cor indecisa. Fátima fez sinal para que subissem. Carmén, atarantada, acedeu aos movimentos das outras e permitiu uma nudez completa. A ducha caiu macia sobre aquele corpo que nada mais tinha além de pele, ossos e abandono. Um sabão de lavanda francesa deslisou aqueles aclives e declives com carinho e presteza. Logo, Fátima interrompeu o enlevo e envolveu a senhora em toalha macia. Helena já lavara e estendera as roupas à janela, custariam a secar. Uma dose generosa de passiflora, acomodação do espirito em a cama que fora de José e Carmencita del Mar rendeu-se ao sono. 

 

Fatima não falava com Helena há justos cinco dias. Depois do episódio da foto com a mãe no vaudeville, algo entre as duas se magoou. Agora, unidas pela caridade, reacendia-se o luzeiro da doçura e aquele algo mais, sonhador e reticente. Sossegado o ambiente,  frio a entrar pela janela, estavam as mulheres diante de um travesseiro açucarado e chá de anis. As duas pensaram juntas, contatar Mariano Lole. Quem sabe ele, em seu obituário, pudesse ao menos permitir um adeus a Aní, se confirmado o passamento. Alguém, naquele Portugal, meu tesouro, haveria de ter posto os olhos em uma andarilha ressequida e só.

 

E assim foi. Helena digitou o número no telemóvel.  Lole abriu a convocatória. 

 

Madre de las mareas
sálvame
Madre de la canción
te llamo
madre del perdon
Ayuda
Madre de las mareas
Alcanza
Luna de Raymond 
Luna de Marilia
La luna de Clara y Bela
Luna normanda
Madrid
luna de ojos oscuros
luna en mis ojos
Luna, te perdí
Protege mis encantamientos
lo que vuelve a mi
Cara de Melaos
Cómo estás
 
 
 
 

segunda-feira, 21 de outubro de 2024

Contos de malhas e mourarias 10








O siamês mestiço

 


Helena, fugida de Troia, toda inocência, trouxe a foto da mãe consigo, andava saudosa e nem entendia tal sentir. O pai acenava da plateia, ela apontou. Segurava uma flor que jogaria ao palco, após o clic. Helena já se notava no ventre proeminente e despudorado, o corpo de deusa daquela genitora desenhado em minúsculo maiô. Não se podia reconhecer o rapaz de pronto, apesar dos spots a focalizar a plateia, ávida de Vaudeville. Fátima foi buscar os óculos, a ver quão vesuviana era a gaja que enfeitiçara o marido ainda imberbe. Uma foto não o poria grisalho em um mil novecentos e oitenta e um. Logo a senhora respirou mais fundamente, expirou em modo de sopro. 

 

As marré dessi entraram em cena no exato instante em que Fátima mergulhou em uma poltrona de canto, a foto nas mãos. Uma delas trazia ao colo um siamês mestiço, algo perto do branco no corpinho, patas, cauda e carinha preto amarronzado. Vinham desculpar-se de comentário acre que magoou toda Alfama, apreciadora da Fátima, de acenar lenços para ela. Só Fátima não conhecia o motivo dos rapapés. A visão obnubilada não deixou ver o gato, para estranhamento das mulheres.

 

Por alguma razão só dela, Fátima quase desfalecera, ao dar-se conta de que o homem que acenava com a flor em nada lembrava José. Helena apavorou-se com a palidez que viu,  tomou um leque da parede para abanar a amiga. As marré dessi, sem entender o quadro, trataram de colocar o gato sobre um aparador e sair de fininho, encabuladas por não saberem auxiliar. O corpo da senhora, um tanto menos arredondado, coube inteiro no acento. Fatima recordou os domingos de sentar-se ao colo de José, em especial nas tardes de frio. Ficava só um pouco, o suficiente para um abraço, logo após secar a louça, as mãos ainda úmidas, ele a cochilar. Tirava do marido um som de felino afetuoso. Tudo isso contou a Helena, do seu José tão amável, que jamais pensara magoar. 

 

O gato esperava ser notado de alguma maneira. Poderia ir por dois caminhos: derrubaria o vaso de cristal que pertencera à sogra de Fátima ou ensaiaria seu primeiro miado em ré maior. Optou por uma apresentação simpática e nobre. Tocou delicadamente a saia de Helena. 

 

 

 

 

 

 

 

quinta-feira, 19 de setembro de 2024

Contos de malhas e mourarias 9




Frivolité e o pudim da batalha

 

 

 

Algo primordial se quebrara nos últimos tempos, e nem é preciso ir muito longe para entender. O José Zezito partira o próprio coração e mais, agora só podia ser olhado do porta retrato da sala, fotochapado na bela idade dos quarentanos. As vizinhas de marré acabavam de sair, hipocritazinhas em seu pipilar. Maldisseram quem queriam, não contavam que a recíproca era verdadeira. Era para serem casadoiras, porém a solidão as uniu em pretzel. 

 

Diante de uma xicarinha de café brasileiro, uma cornucópia mordiscada e a letra da canção Romance de uma caveira[1], Fátima não pensava, não sentia. Não. O vestido salmão de estrelas pequeninas e frivolité já apresentava desgastes aqui e ali. O clic clac do relógio gato era a única coisa invariável que se ouvia no sobrado. Já passava das nove horas, o carris descera a ladeira, a Matilde viajara. Um tec tec à porta anunciou a Helena. Não era. Era uma vizinha recente, do quinhentos e oito. Trazia um prato, envolto em belo pano. O cheiro do doce convidava. Pudim da batalha. 


Fátima sempre fora hospitaleira. Tratou logo de engolir o choro que não vinha, sorrir também não pode,  colocou logo outra xícara à mesa e ofereceu sua produção de açúcar à visitante. Não se furtou a um generoso pedaço do pudim. A Eufrásia, extrovertida, de voz agudíssima, de causar frêmitos, veio sondar a vizinha. Falavam dela, que apreciava os gatos. Queria saber se a senhora aceitaria um filhote siamês, cinza e preto, olhos azuis, que fora abandonado em uma caixa de geladeira, em frente à sua porta. Não é que não os apreciasse, aos felinos, não tinha jeito no cuidar, nem de plantas, nem de bichos. Por instinto, Fátima olhou de chofre a estampa de José. Se o estopim da última rusga tinha sido uma insistência em deixar entrar no lar a frajolinha, além da cama quebrada, não se esquecia. E agora aquilo, o companheiro morto, o vazio do pinicadinho, o colchão desconfortável. Lá fora, uma sucessão de trovoadas deixou as duas em silêncio, a esperar que a borrasca desabasse sobre uma Lisboa empoeirada, fuligem de Coimbra.

 

Outro tec tec e já foi entrando a Helena, praticamente da casa, tão linda aparição fugida de Troia. Salvou-se a Fátima, que aquietou a fala e deixou as duas a perderem elogios nas ladeiras dos cosméticos, dos ton sour ton. Exibiram o batom novo, a meia de nylon, a sandália rasteira, a blusa sem mangas, os braços firmes nas axilas, o belo sorriso da atriz em destaque, Fernanda Torres e um título de Walter Hugo Mãe, recém lançado, comentários que as redimiram da vulgaridade em que se atiravam. Logo se ergueram as duas mulheres e combinaram de ir olhar o Tejo sob a chuva. Insistiram com Fátima, que saísse a espairecer, olhar o mundo molhado. Eufrásia ainda a persuadiu mais uma vez, que bom companheirinho teria se aceitasse o bichano, tão precisado de carinho, boa ração e um nome. Voltaria mais tarde, para saber. Beijinhos perdidos, os de Helena a selar os lábios.

 

Foi um alívio ouvir novamente o relógio gato, reviver tempos de recato, discrição e delicadeza em praça pública. Não que pensasse algo indesejado das moças que saiam, mas preferia mais silêncio, menos tagarelice. Aquele homem, travestido de mulher, o tal Angel, da manhã passada em casa de Matilde, voltou-lhe à mente, como se cochichasse. Faria muito bem, ele dizia, se tu tomasses o bichano por companhia, nesses tempos de languidez. 

 

 

 

 

 



[1] Valsa canção brasileira, composta por Alvarenga/Chiquinho Sales/Ranchinho

sábado, 24 de agosto de 2024

Contos de malhas e mourarias 8

 





A viúva do enfartado 

 


 


Que todos perdoem a pequenez das reminiscências aqui servidas. Fala, do quinto degrau da escada do sobrado, a nossa Fátima. Ainda na calçada, hesitante, ela recita o poema de Pessoa[1],  o das roupas a voejar nos varais. Como se encanta disso a senhorinha, inda mais se flagra a roupa íntima de alguém exposta entre ceroulas e fronhas. 


Resfolegante, ainda a arrastar sobrepeso, embora os esforços genuínos para evitar ginjinha e vinte e um doces portugueses diferentes, com os quais evoluí até ali os dias, açucarada, diante da agenda de capa preta na qual anota ideias, de contar aos filhos que não fez. E agora esta, a menina Helena e a ligação com o seu enfartado, o José. E se confirma o horror, a seca por dentro é ela, Fátima, o útero inospedeiro é dela. Naquele momento apenas, ela compreendeu a lógica dos médicos.

 

Os elogios são venenosos. Porém, aqueles proferidos às avessas também são mau agouro. Precisaríamos, todos nós, refinar o arcabouço da sedução. Quem já viu uma criança charmosita? É malacafento. Pois Fátima, em momentos de fragilidade, recorria aos galanteios infantis e se tornava pouco confiável, permeável. Dava a chave da própria vida a outro qualquer, em troca de doces subjetivos. Depois, não entende por que carece tanto dos doces objetivos. Naquele exercício, o de subir os degraus, a ponderação não era a respeito de sedutores ou doces e sim, de fracassos.

 

Matilde, Fátima a conheceu no Hospital São Bernardo, em Setúbal. A recém casada esposa de José sofreu intoxicação alimentar em um passeio e a enfermeira, muito jovem, uns cabelos de fogo que botavam medo, socorreu, solícita, a dispor em Fátima os dedos, desvendando seus excessos digestórios e descompondo sem pudores, em frente a chorosa gleba de pacientes. O que eram aquelas gorduras todas, como se arriscava a caminhar por ladeiras, como as tornava a subir naquele estado? Como cabia nos carris? Como lhe achar um sanitário onde a pudesse lavar? Uma maca onde a pudesse deitar? Foi assim que começou uma amizade forte, que já durava muitos anos.

 

Lá estava a Fátima, escadaria do sobrado, manhã azul, a contar com Matilde, mais uma vez. A enfermeira passava ali os períodos de recesso. Trabalhava, hoje, em um asilo de loucos, próximo à Cidade do Porto. Às vezes, a companheira Catarina chegava, quase em tempo de Matilde voltar ao trabalho. Respeitavam-se as escalas. Outras vezes eram dois homens belíssimos que vinham, todos eles trabalhadores do referido abrigo para idosos, melhor dizer assim. 

 

Fátima ganhou mais um degrau. O pé de avanço abriu uma clareira em sua memória. Dançava em um salão azulado, ponteado de estrelas. O seu homem, no abraço em que ela se abandonava, tonta de vinho, vez por outra tocava com os lábios o antebraço que ela estendia, quase acima do ombro dele, para sentir a brisa do voleio e esperar tal gesto, que a punha nas nuvens. O beijo trazia consigo um bigode fino, bem escovado, que assentava àquela figura minhota tão querida. Os lábios escorriam para a curva do pulso e paravam na palma da mão. Um gritinho muito curto acompanhava a ousada trilha, que logo evoluía, ou em direção aos dedos ou ao braço nu e então a valsa os conduzia a lugar menos iluminado, e vinham outros revides. E nada disso era sedução, era ir ao ponto. Naquelas valsas, de Setúbal, de Caminha, de Melgaço, de Mondim de Basto, de Faro, os tentames para um filho, desejo de muitos saraus, malograram. Veio dessas tertúlias o costume de arredar os móveis na sala na Alfama e dançar, sempre que a saudade doía. 

 

E agora esta, a menina Helena, fugida de Troia. E a paternidade de José.

 

Fátima ganhou mais três degraus e já não lhe pesavam tanto os desequilíbrios hormonais. Já não se confundiam os velhos desejos de valsa, que quase experimentou com Mariano Lole, mas desistiu a tempo. Não porque esquecera a falta dos filhos, mas por precisar de um sentimento profundo, que José levou consigo e plantou no Cemitério do Lumiar.

 

Em outra preciosa conversa, Matilde já lhe chamara a atenção, que não invocasse mais o noivo de além túmulo, que o deixasse aos cuidados de Camilo Castelo Branco. A enfermeira já passara os olhos em Lole, tanto nos obituários quanto nos livros que publicou; a pessoa apessoada era sedutora e só. Era pai de duas caveiras que se amavam e só. Quebrou à amiga o espelho ilusório da boa companhia na viuvez. Fátima esperava repreensões dessa natureza hoje, quando lhe contasse que o marido morto errara de cama.   

 

Finalmente respirou, sem ofegar, diante da porta, o apartamento sisudo de Matilde. A enfermeira deu guarida a Fátima, surpreendeu-a com uma reunião quase musical. Estavam diante de uma mesa de desjejum, com exatos vinte e um doces diferentes, ginginha, vinho verde, café, água, suco de frutas o Gaspare e seu violão, o Javier e um par de castanholas, as pobre pobre de marré marré dessí, Catarina, a Helena fugida de Troia e um senhor, vestido de rapariga. Soube-se depois que se chamava Angel.

 


[1] Lento no luar lá fora/na noite lenta/ o vento agita/ coisas que fazem sombra a mexer/ Não é talvez senão a roupa/ que deixaram estendida no andar mais alto (...)

segunda-feira, 22 de julho de 2024

Contos de Malhas e Mourarias 7




sericaia



Querências de cericá

 

 

As raparigas alegres de marré de si não haviam fechado questão sobre os pedaços de cochicho que flagraram, madrugada adentro. Tomavam seu desjejum, as bolas de Berlim a suspirar na cesta de palhinha que compunha a mesa para dois. O chá amargo esfriava no bule e ambas iniciavam uma frase ao mesmo tempo, interrompiam e gemiam, como se movidas a marcação teatral. De uma coisa estavam seguras. Fora Helena, liberta de Troia, a que viram sair sorrateira, logo que o galo cantou pela terceira vez. Mordiam-se, as duas, para fofocar com Matilde, três sobrados ladeira acima, vontade sem medida de sujar as pegadas de Fátima na escada que dava para o segundo piso. Qual a razão para invejas, ciúmes, calúnias, difamações, intrigas? A ideia de que Fátima tinha sortes, marido morto, escritor com quem flertar e agora aquela rapariga estrangeira a lhe dizer lirismos na madrugada? Vontade quase incontrolável de rasgar as vestes despudoradas da amiga glutona, sim, tinham Fátima na condição de amiga de duas décadas, que era o tempo de convívio na Alfama. 

 

O que se contará de chofre, para evitar qualquer malquerença, José, que Deus o guarde, subira certa murada, no inicio do casório, tempo ainda em que se jogavam as tralhas no Ano Bom, a espatifar pelas calçadas. Fora um deslize apenas, com a bufona de revista do Carlos Bittencourt, a tal da Abigail. José voltou compungido, manchado no colarinho, a exalar Chanel falsificado pelas partes. E agora vinha Helena, liberta de Troia, a dizer-se filha de dama do teatro português, desafortunada pelo comportamento mortiço, pai desconhecido. A moça contou que vivera uma infância até lépida, de trupe em trupe, vinha em vinha, a olhar a mãe despir-se e tornar a vestir négligé. Sempre havia de comer, beber e um canto na charrete para dormir, além de histórias picantes, certa ternura, menos da mãe que dos colegas de profissão. Aos quinze anos, Helena foi cuidar de seus sonhos, a colher uvas no Douro. Hoje contava trinta e dois, mulher feita, conscienciosa e linda. Aconteceu de acostar-se com o Jorge, há quatro noites, no trem noturno. Nunca o fizera assim, por bel prazer. Combinaram de não mais se ver, o que muito a confrangia. Helena entrou em herbanário, já em Lisboa, com uma receita forjada de Misoprostol. A moça do balcão, esclarecida, lhe prescreveu Levonorgestrel e recomendou consulta médica, para liberar-se de doenças duras.

 

Fica o dito pelo não dito, Fátima colheu aquela meia filha no calor da lareira, lhe deu leite de burra, caldo verde e brisa de liz. A manhã quase se cumprira quando a senhora desceu, um tanto desfolhada, para tornar a subir as escadas, três sobrados ladeira acima, à cata de Matilde. Murmurava o Fado da Alfama e já não resfolegava tanto. Vestia um vestido marinho, de mangas longas, abaixo dos joelhos, gola fechada. 

domingo, 23 de junho de 2024

Contos de malhas e mourarias 6






Os tomateiros

 

 

Por instantes, o tempo ceou. Aquela moça, de beleza intrigante, amolecida entre seios, sofrera grande decepção. Fátima não lhe culpou, certas mulheres são musa de ópera. Os cabelos castanho avermelhados, ondulados, volumosos, perfumosos de jasmim, espalhavam-se sem dó sobre as margaridas do vestido. Se estivesse bem, Helena teria olhado de comprido para os trajes e avisado, gentil, estás a exagerar nas exposições. Agora, por sabe-se lá que razão, tratava de agasalhar-se entre as carnes mal cobertas daquela senhora excêntrica, que conhecera há dois meses. Um certo frêmito perturbou o espirito de Fátima, em geral apaziguado nos desejos. Helena, liberta de Troia, a agarrar-lhe as escápulas, descia e subia as mãos em síncope até a cintura, de corte sutil. Dona de longilíneos braços e mãos de dedos longos, executava movimentos circulares de levantar os mortos, que envolviam e desenvolviam as curvas renais. Fátima julgou-se em delírio. Com medo de cair nos braços de Lole, lá estava ela, imersa em cabelos de fogo e rosto banhado de lágrimas, tocada por mãos de rinoceronte ibérico, comovente situação. Sem fôlego e sem querer que a perturbação passasse, Fátima custou a crer que Helena estivesse em bom juízo. Sim e não. Os dorsos, sincrônicos, escorregaram sobre um tapete felpudo em frente a lareira apagada, Helena a aninhar-se no colo farto, agora todo a si pertencente. Fátima fez o que cabia, acolheu, acalentou e a moça tinha a dimensão de menina delicada. Sem jamais ter tomado crianças nos braços, o susto disparou os batimentos do coração de avó, mãe, moça nova, que Helena sentiu e esperou, ainda a soluçar. Meia hora se passou nesse idílio, de firmes consequências. 

 

Havia de escoar algum tempo, Fatima em embalar imperceptível, Helena a deixar um rasto de lágrimas por sobre as margaridas, sem detença das mãos, que passearam onde quiseram, enquanto as de Fátima, diligentes, asilavam. O assombro veio, mesmo, de um gesto cúmplice, de uma alça rompida. O líquido verteu, generoso, sabor que lembrava melão doce. Fátima doou, Helena sorveu, até secar.

 

A moça dormiu, de ressonar. Como mãe que deita o filho ao berço, Fátima depôs o corpo sobre o tapete, puxou do sofá uma manta leve e dois almofadões, compondo um descanso suave para esta nova companhia. José havia criado um mecanismo para a lareira que não demandava lenha. Acionava-se o controle da calefação e lá vinha delicada chama, de prazeroso calor. Fatima, antes de erguer-se, ainda demorou os olhos naqueles cabelos, que tratou de harmonizar. Cobriu-se com um roupão que ficava pendurado no banheiro e foi para a cozinha, preparar um lanche para quando Helena despertasse e pudesse contar o que se passou.

 

Nesse ínterim, Lole lembrou-se de um quiosque de Pasteis-de-Belém, próximo à estação ferroviária. Das idas e vindas dos trens, dos passageiros, dos próprios passos, obteve sossego íntimo. Caiu em si. O frêmito luxurioso passara. Sentou-se com um prato diante si e logo o garçom lhe trouxe um moscatel, deu a provar e serviu uma taça. O sol das quinze horas cintilava, ameno. Consultou, no telefone celular, a lista de óbitos e os que traziam as circunstâncias do passamento. Dedicou três horas a dois poemas curtos, aprovou-os quando os concluiu. Enviou-os para o editorial. Estavam de acordo também para o próximo seminário de literatura no qual atuaria. Tomou o primeiro trem noturno para Barca D’Alva às dezenove horas.

 

Neste momento, em casa de Fátima, Helena custou a entender onde e com quem estava. A pílula do dia seguinte, ingerida pela hora do almoço, lhe provocou náuseas e gemidos. Ainda tinha nos lábios o estranho gosto de melão maduro. Fátima, que esperava sentada à janela, veio prontamente socorrer. Havia um pouco de sangue na manta. 

 

A conversa desenvolveu-se diante da lareira, tomadas as providências necessárias para sossego das almas ali envolvidas. Tudo teve início com a visita a uma horta comunitária, em meio a tomates maduros. 

quinta-feira, 23 de maio de 2024

Contos de malhas e mourarias 5


Helena, liberta de Troia

 

 

O amigo elegante a convidou a cear em um vinhedo, às bordas do Douro, em Barca d'Alva. Mariano Lole esperou pela senhora a caminhar, de um lado a outro, sobre um tapete de tulipas, por meia hora, na Estação Ferroviária de Santa Apolónia. Era um querer peculiar o seu, em vestido mínimo, sem mangas e acima dos joelhos, transparente, três tons acima da cor da pele, pontilhado de margaridas do tamanho da palma da mão, metade dos seios à mostra, quadris e coxas torneados pelo tecido, viuvez explícita e pública, sem rendas submersas ou sapatos.  O local do encontro fervilhava de anónimos, que iam daqui para ali. O alto falante tocava, em volume tolerável, uma canção brasileira a descrever azul, espaço, arrecifes e bancos de areia. Ainda era prematuro, para Lole, considerar enlace de qualquer natureza. Um componente de ternura pairava no ambiente que os atraia, embora aquela delusão bacante que o perseguia. O encontro daquela manhã de domingo evocava ambiguidades, obrigava ocultar-se e despir. O turbilhão da estação, a saída da capital, promessa de dia lúbrico. Se houvera votos, gargantilhas ou convite para mudança de domicílio, os registros ignoravam. José ainda dormia, em retrato, no criado mudo da sabina. Eram esperados, por parte do escritor, dengos, passarinhações, aforismos e a queda das torres puritanas. Obstinara-se por aquela mulher antiga, de proporções circenses, a cheirar fermento. 

Fátima, de sua vez, com hercúleo esforço, reduzira em quatro número o seu manequim. Trocou o lado de pentear seu pixaim e também a tintura. Meteu a pinça entre as sobrancelhas e deu suavidade à sua expressão infantil. Desculpava-se com José, como podia. Há vários dias que não ia visitar a Estefânia, confeiteira da Pão Nosso d’Alfama. O vestido sem mangas goiaba, onde se espalhavam as margaridas, ela o sentia ousado para a ocasião. Nada havia que lutar, abrir caminho, disputar, seduzir, provar. Apenas presença, que desejaria leve. O cheiro de José ainda era sentido pela casa. A frajola, a dormitar sob um facho de sol no beiral da janela, ainda decidia se ficava ou dava pinotes. O felino observava aquele pinicar pela sala, o corrido a tocar na vitrola, pelos da nuca oriçados. O relógio contava os minutos e Fátima nada de calçar as miúdas sandálias brancas, sem salto. Três toques na porta a fizeram desmanchar o idílio. Quem sabe fosse Mariano, excedendo as expectativas. Era Helena, liberta de Troia. A moça despencou-se entre os seios de Fátima, a chorar.

 

domingo, 21 de abril de 2024

Contos de malhas e mourarias 4


A. Magalhães


4 - Frivoleté

 

 

À  mesa da sala, onde se sentavam quatro, repousava o obituário. Também o livro Duas caveiras que se amavam, marcado à página trinta e dois, a certidão do passamento de José, um prato generoso de doces confeitados, agrado de Helena, a nova moradora da segunda janela da esquerda, de frente para o sobrado de Fátima. Uma taça de café brasileiro, um copo d’água, um maço contendo talvez vinte correspondências sem abrir, incluindo-se o telegrama, que veio há sei lá quantos dias, de Ponte de Sor. Um trilho de mesa branco, sem borda ou enfeite, servia como anteparo à madeira acinzentada. O sol das dez convidava a sair, sombrinha aberta, a ver o Tejo ali adiante.

 

Fátima trouxe consigo uma tigela com frutas e sentou-se. Duas luminárias quedavam acesas, pouco acima de seus cabelos, pareciam pirilampos em cenário peculiar. Quase que a viúva precisava de duas cadeiras para acomodar os quadris. De semblante melancólico e saudoso, logo apoiou a cabeça com o punho esquerdo, cotovelo fincado à janela. Trajava um vestido inapropriado para a manhã gelada, nem se lembrara de ligar a calefação. Não fizera gosto de usar luto, o que lhe custou mais falatório das janelas indecorosas. O vestido era rosa salmão sem mangas, estampado de estrelinhas creme, delicado frivolité a contornar o decote que mal continha os seios, talvez a pesar três quilos cada um. O penteado era uma carapinha de difícil conformação, dividida ao meio e elevada de cada lado, a maneira de certos penteados franceses do século dezoito. Fátima mantinha o corte curto atrás das orelhas, caprichosamente redondas e abertas, feito borboletas em pleno voo. As sobrancelhas próximas e retas, olhos pequeninos, alheios, rosto oval, nariz indefinível, boca reta, fina. O conjunto da obra dizia de uma menina vencida, porém não oprimida. Cativava à primeira impressão. O espírito ficava-lhe ao lado, caneta à mão, pronta para pequenas anotações em uma agenda de capa preta. A mão direita acariciava um camafeu que contornava o decote, talvez única alusão a seu novo estado de mulher só. Dentro do miúdo coração, iam as fotos do casamento, José à esquerda de quem abria o artefato.

 

A página do jornal fora recortada, estava apoiada junto à taça. O reclame trazia Deixa-nos Antária Santana. O Casaredo se despede de ela diante da Julieta, âncora companheira, plantada no jardim, Praia da Senhora da Pedra sem número. Ficam dispostas ali suas cinzas, em urna pequenina, algumas pedras a imantar o local, doadas por enfermeiros, médicos e pacientes lúcidos. Notifica-se, outrossim, que é o desejo da senhora, lavrado em testamento, o filho, Cristino Santana, venha para dispersar as cinzas no caminho entre Ponte de Sor e Lisboa. Quatro ânforas da mesma cremação, que cabem em uma palma formaram outro caminho, um ponto em Sagres, outro na Amoreira, ainda outro em Azenha do Mar.  Já repousa um punhado de Antária ao lado do rinoceronte, na Torre de Belém, Lisboa. O último bocado, pede-se que o deixe em um parapeito da Alfama, ao abrigo dos gatos.

 

uma vez me disseram
não se demore em tal mirar

é o elmo de Perseu
anda a Medusa pelos becos
a desfilar 
A lua cigana, que a todos seduz
e de ninguém é
mostra sua face
carmencita del mar
e já se desmancha
os dias evolam
as ampulhetas desaguam
os brincos princesas 
os rufos atentos a anunciar 

cantigas de desapegar

 



 

 

 

 

 

 

segunda-feira, 18 de março de 2024

Contos de malhas e mourarias 3


O enfarto

 

 

A vida de Mariano Lole, nome coloratura do escritor de poemas obituários, ia a meio, se considerarmos as estimativas de homem de quarenta e um anos bem alimentado, caminhante por ofício. Depois do falecimento da tia e das várias quintas que ela havia deixado em testamento, vinhedos na maioria, o benefício pecuniário dera a ele tranquilidade de ir e vir, senão a dos príncipes, de certas celebridades. Por conta do conforto, estava sempre de passagem por Lisboa, nos intervalos entre uma feira de livro e outra, várias entrevistas, programas de auditório em extinção, viagens para palestras em escolas de literatura, direito, sociologia e alguma saudade. Seus livros vendiam o suficiente para manter o moral da editora. A agente cogitava tradução da última publicação, Duas caveiras que se amavam, para o italiano e espanhol, idiomas que Mariano Lole dominava com reservas. 

 

O barulho todo não outorgara a Lole prêmio ou notoriedade e, também com isso, estava de bons ventos, pois ainda não encontrara a voz narrativa, fundamental na lide de escritor destacado. Resignado, o homem tinha lá consigo que a voz não soaria. Contentava-se com as murmurações. Se havia alguma grande musa, a lhe servir de para sol, a escrita não revelava. Só e silencioso, Mariano Lole tinha, nas nuvens, aliadas potentes para inspirar-se. Os mortos, em bom número, norteavam-lhe os passos, garantiam  o sustento do oficio. As histórias que coletava ou inventava, permitiam seguir com seu talento de alentador dos que ficam. Um ou outro fado se ouvia nas casas noturnas, letras de sua lavra.

 

O público, formado por esposas chorosas, maridos dolentes, alguns filhos, familiares a espera da abertura de inventário, amantes que disseram adeus a seus amores, além das solteiras, estes eram leitores fiéis. Os outros teriam, inevitavelmente, seu momento. Lole conseguira aliar seu emprego no jornal com a função de correspondente nacional. Em geral, o redator de obituários ia cobrir mortes em incêndios, em casas de recuperação, de idosos, de passagem. Um rapineiro. A morte trivial, surpreendida por uma bala perdida, por um enfarto fulminante, também tinha lugar em seus versos. As coisas maiores, ilustradas por campanhas, mulheres adulteradas, crianças perdidas, largados, viciados, exterminados, em algum momento eram abordadas, até com temor. 

 

Fatima lia o jornal todas as manhãs. José sempre lhe chamara a atenção para aquele costume melancólico, o de ler obituários. No fundo, o marido achava que esta leitura só aumentava a voracidade. Ele via a esposa cada vez mais arredondada nas formas, tanto que a cama quebrou na noite da ponderação decisiva. Depois de muito choro e falta de vergonha, combinaram de dormir em leitos separados já no dia seguinte. Surpreendeu à mulher que, com a chegada dos móveis novos, duas manhãs depois da rusga, ela menos agastada, obituário lido, viesse também a notícia do falecimento. Prematuro, inesperado, em hora indevida, segundo o poema cantava. Não significava, o desentendimento do casal, razão suficiente para adeus tão contundente. 

 

José deitou a cabeça no balcão do estabelecimento junto à Sé de Lisboa, onde tomava a refeição matinal, já que Fátima seguia amuada e ele resolvera dormir na Pensão Residencial Flor dos Cavaleiros. O marido deu, no tampo encerado, diante do café recém filtrado,  seu último ai. O corpo forte e espaçoso amoleceu e não tombou do banco em que se equilibrava. Por sorte, o homem tinha os documentos na carteira, a notícia fatal cruzou as ruas e deu à porta de Fátima sem detença, a do esposo recolhido ao Hospital de São José. 

 

Mariano Lole abordou a atendente no balcão, para pedir seu travesseiro e chá de jasmim, no momento exato em que José sofreu a síncope. Grande presença a do escritor, a socorrer com presteza e evitar qualquer desprestígio. Nas páginas do matutino, os leitores puderam compungir-se e Lole murmurar, em nuvens lilás e cor de amora. Fátima sentiu o que perdera somente quando deu com os versos de soleá dedicados a José

 

Soaram, no tilintar das xícaras 

as gretas dos interruptores

A manhã da Alfama, um espanto 

Um de repente em março
Orvalhava a pele sem casaco

Vento invernado, ergueu as saias
Informes do vestido saco

Clemência dos anjos, após crise hipertensiva

Ele era esperado por quem conta nidificações

Tinha de si aquele sorriso contido
Estrelas a lhe preceder o aroma de café
Deus, o seu pedaço mais bonito, alvorecia em ele

Intocadas palavras, era impossível versejar
A paz cantou loas em derredor e os que passavam
Conspiraram com o perímetro estranha alquimia

O verso não pode demorar-se
Não causou comoção contrária
O mundo não condenou tal contrição

 

 

 

 

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

Contos de malhas e mourarias 2




O amigo elegante



As histórias do homem se espalharam pela capital, o advogado causídico que escrevia poemas obituários. O sucesso editorial que ele fazia, não se podia dizer atrativo para damas casadoiras ou para a comunidade literária. Para os adeus com lenço namorado, havia de se escrever muita coisa ainda. O último livro, Duas caveiras que se amavam, vendeu muito bem na Ler Devagar. A expressão de lince ibérico, que o bigode do advogado e professor de literatura comparada da Escola Dona Filipa de Lencastre desenhava sobre o lábio, prometia alguns suspiros de confeitaria. E foi ali, na Pão Nosso D’Alfama, que o esbarrão aconteceu. Fátima saía, afoita e abraçada a uma cestinha de éclairs. O escritor entrava, airoso, boina na mão. De forma jocosa, o bigode foi-se perder entre os seios da dama, grandes almofadas úmidas, que cheiravam a fermento. Ambos precisaram de alguns minutos, para desatravancar-se e liberar a porta aos fregueses. As raparigas alegres de marré de si, vizinhas de Fátima, entravam no momento em que os dois se recompunham, a ponto de não deixar ver a respiração sôfrega e o coração aos pulos. Desculpas, desculpas, cada par tomou seu rumo. As raparigas pediram chá gelado, Fatima balançou-se até as escadas do sobrado e então parou ao primeiro degrau, a tentar entender o que fora aquele momento, o cartão do escritor espremido entre as folhas do primeiro livro dele, O amigo elegante.

 

sábado, 13 de janeiro de 2024

Contos de malhas e mourarias 1


 




Lisboa Cordilheira e a gata gris


A sintonia dos dois era a de Carlos do Carmo, a cantar o Fado Alegre. Contavam ambos sessenta e tantos anos, bem como um sobrepeso que honrava as poucas vestes de verão e os passos que inventavam para pinicar o assoalho, recém coberto de carpete de madeira. Como o sobrado na Alfama era todo deles e bailavam descalços, nenhum desconforto causavam às paredes laterais, com que dividiam doçarias e estórias. Pelas nove da manhã, Lisboa vibrava convites e enredos e ambos aproveitavam o gritar das gaivotas. 

 

Haviam-se casado quarenta e dois anos antes. Não tiveram crianças à volta e disso quase nunca se falava. Ao invés, os gatos entraram pela janela da sacada e ficaram, variando o tempo de passagem em dezesseis, dezoito anos. Foram Pilar, Tico, Pitua e Ítalo, o que se jogou janela abaixo. Fizeram as vezes de filhos durante o consórcio e, nestes últimos dias, uma frajola rondava, a saber se podia dançar o corrido com eles. Fátima dizia sim. José dizia ainda dói. Argumentava que, se faltassem, o gato ficava perdido ou jogava-se. Por que sonhar com a última falua, Zezé, perguntava a esposa piedosa. Nem imaginava o quanto doía. Até lá viveremos, meu Zezito, despiremos a veste diante da lua e cuidamos do bichano. Depois, os anjos proverão. José ainda resistia, profético. 

 

Não chegavam a rusgas tais dialogações. Quando não era possível resolver, acabavam-se os dois, em travesseiros açucarados. Para maior deleite, dividiam a fornada cheirosa com duas vizinhas solteironas, que vinham cear a convite deles.

 

No fim daquela tarde, chegou um envelope expresso, de Ponte de Sor.