sábado, 24 de agosto de 2024

Contos de malhas e mourarias 8

 





A viúva do enfartado 

 


 


Que todos perdoem a pequenez das reminiscências aqui servidas. Fala, do quinto degrau da escada do sobrado, a nossa Fátima. Ainda na calçada, hesitante, ela recita o poema de Pessoa[1],  o das roupas a voejar nos varais. Como se encanta disso a senhorinha, inda mais se flagra a roupa íntima de alguém exposta entre ceroulas e fronhas. 


Resfolegante, ainda a arrastar sobrepeso, embora os esforços genuínos para evitar ginjinha e vinte e um doces portugueses diferentes, com os quais evoluí até ali os dias, açucarada, diante da agenda de capa preta na qual anota ideias, de contar aos filhos que não fez. E agora esta, a menina Helena e a ligação com o seu enfartado, o José. E se confirma o horror, a seca por dentro é ela, Fátima, o útero inospedeiro é dela. Naquele momento apenas, ela compreendeu a lógica dos médicos.

 

Os elogios são venenosos. Porém, aqueles proferidos às avessas também são mau agouro. Precisaríamos, todos nós, refinar o arcabouço da sedução. Quem já viu uma criança charmosita? É malacafento. Pois Fátima, em momentos de fragilidade, recorria aos galanteios infantis e se tornava pouco confiável, permeável. Dava a chave da própria vida a outro qualquer, em troca de doces subjetivos. Depois, não entende por que carece tanto dos doces objetivos. Naquele exercício, o de subir os degraus, a ponderação não era a respeito de sedutores ou doces e sim, de fracassos.

 

Matilde, Fátima a conheceu no Hospital São Bernardo, em Setúbal. A recém casada esposa de José sofreu intoxicação alimentar em um passeio e a enfermeira, muito jovem, uns cabelos de fogo que botavam medo, socorreu, solícita, a dispor em Fátima os dedos, desvendando seus excessos digestórios e descompondo sem pudores, em frente a chorosa gleba de pacientes. O que eram aquelas gorduras todas, como se arriscava a caminhar por ladeiras, como as tornava a subir naquele estado? Como cabia nos carris? Como lhe achar um sanitário onde a pudesse lavar? Uma maca onde a pudesse deitar? Foi assim que começou uma amizade forte, que já durava muitos anos.

 

Lá estava a Fátima, escadaria do sobrado, manhã azul, a contar com Matilde, mais uma vez. A enfermeira passava ali os períodos de recesso. Trabalhava, hoje, em um asilo de loucos, próximo à Cidade do Porto. Às vezes, a companheira Catarina chegava, quase em tempo de Matilde voltar ao trabalho. Respeitavam-se as escalas. Outras vezes eram dois homens belíssimos que vinham, todos eles trabalhadores do referido abrigo para idosos, melhor dizer assim. 

 

Fátima ganhou mais um degrau. O pé de avanço abriu uma clareira em sua memória. Dançava em um salão azulado, ponteado de estrelas. O seu homem, no abraço em que ela se abandonava, tonta de vinho, vez por outra tocava com os lábios o antebraço que ela estendia, quase acima do ombro dele, para sentir a brisa do voleio e esperar tal gesto, que a punha nas nuvens. O beijo trazia consigo um bigode fino, bem escovado, que assentava àquela figura minhota tão querida. Os lábios escorriam para a curva do pulso e paravam na palma da mão. Um gritinho muito curto acompanhava a ousada trilha, que logo evoluía, ou em direção aos dedos ou ao braço nu e então a valsa os conduzia a lugar menos iluminado, e vinham outros revides. E nada disso era sedução, era ir ao ponto. Naquelas valsas, de Setúbal, de Caminha, de Melgaço, de Mondim de Basto, de Faro, os tentames para um filho, desejo de muitos saraus, malograram. Veio dessas tertúlias o costume de arredar os móveis na sala na Alfama e dançar, sempre que a saudade doía. 

 

E agora esta, a menina Helena, fugida de Troia. E a paternidade de José.

 

Fátima ganhou mais três degraus e já não lhe pesavam tanto os desequilíbrios hormonais. Já não se confundiam os velhos desejos de valsa, que quase experimentou com Mariano Lole, mas desistiu a tempo. Não porque esquecera a falta dos filhos, mas por precisar de um sentimento profundo, que José levou consigo e plantou no Cemitério do Lumiar.

 

Em outra preciosa conversa, Matilde já lhe chamara a atenção, que não invocasse mais o noivo de além túmulo, que o deixasse aos cuidados de Camilo Castelo Branco. A enfermeira já passara os olhos em Lole, tanto nos obituários quanto nos livros que publicou; a pessoa apessoada era sedutora e só. Era pai de duas caveiras que se amavam e só. Quebrou à amiga o espelho ilusório da boa companhia na viuvez. Fátima esperava repreensões dessa natureza hoje, quando lhe contasse que o marido morto errara de cama.   

 

Finalmente respirou, sem ofegar, diante da porta, o apartamento sisudo de Matilde. A enfermeira deu guarida a Fátima, surpreendeu-a com uma reunião quase musical. Estavam diante de uma mesa de desjejum, com exatos vinte e um doces diferentes, ginginha, vinho verde, café, água, suco de frutas o Gaspare e seu violão, o Javier e um par de castanholas, as pobre pobre de marré marré dessí, Catarina, a Helena fugida de Troia e um senhor, vestido de rapariga. Soube-se depois que se chamava Angel.

 


[1] Lento no luar lá fora/na noite lenta/ o vento agita/ coisas que fazem sombra a mexer/ Não é talvez senão a roupa/ que deixaram estendida no andar mais alto (...)

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