quinta-feira, 19 de setembro de 2024

Contos de malhas e mourarias 9




Frivolité e o pudim da batalha

 

 

 

Algo primordial se quebrara nos últimos tempos, e nem é preciso ir muito longe para entender. O José Zezito partira o próprio coração e mais, agora só podia ser olhado do porta retrato da sala, fotochapado na bela idade dos quarentanos. As vizinhas de marré acabavam de sair, hipocritazinhas em seu pipilar. Maldisseram quem queriam, não contavam que a recíproca era verdadeira. Era para serem casadoiras, porém a solidão as uniu em pretzel. 

 

Diante de uma xicarinha de café brasileiro, uma cornucópia mordiscada e a letra da canção Romance de uma caveira[1], Fátima não pensava, não sentia. Não. O vestido salmão de estrelas pequeninas e frivolité já apresentava desgastes aqui e ali. O clic clac do relógio gato era a única coisa invariável que se ouvia no sobrado. Já passava das nove horas, o carris descera a ladeira, a Matilde viajara. Um tec tec à porta anunciou a Helena. Não era. Era uma vizinha recente, do quinhentos e oito. Trazia um prato, envolto em belo pano. O cheiro do doce convidava. Pudim da batalha. 


Fátima sempre fora hospitaleira. Tratou logo de engolir o choro que não vinha, sorrir também não pode,  colocou logo outra xícara à mesa e ofereceu sua produção de açúcar à visitante. Não se furtou a um generoso pedaço do pudim. A Eufrásia, extrovertida, de voz agudíssima, de causar frêmitos, veio sondar a vizinha. Falavam dela, que apreciava os gatos. Queria saber se a senhora aceitaria um filhote siamês, cinza e preto, olhos azuis, que fora abandonado em uma caixa de geladeira, em frente à sua porta. Não é que não os apreciasse, aos felinos, não tinha jeito no cuidar, nem de plantas, nem de bichos. Por instinto, Fátima olhou de chofre a estampa de José. Se o estopim da última rusga tinha sido uma insistência em deixar entrar no lar a frajolinha, além da cama quebrada, não se esquecia. E agora aquilo, o companheiro morto, o vazio do pinicadinho, o colchão desconfortável. Lá fora, uma sucessão de trovoadas deixou as duas em silêncio, a esperar que a borrasca desabasse sobre uma Lisboa empoeirada, fuligem de Coimbra.

 

Outro tec tec e já foi entrando a Helena, praticamente da casa, tão linda aparição fugida de Troia. Salvou-se a Fátima, que aquietou a fala e deixou as duas a perderem elogios nas ladeiras dos cosméticos, dos ton sour ton. Exibiram o batom novo, a meia de nylon, a sandália rasteira, a blusa sem mangas, os braços firmes nas axilas, o belo sorriso da atriz em destaque, Fernanda Torres e um título de Walter Hugo Mãe, recém lançado, comentários que as redimiram da vulgaridade em que se atiravam. Logo se ergueram as duas mulheres e combinaram de ir olhar o Tejo sob a chuva. Insistiram com Fátima, que saísse a espairecer, olhar o mundo molhado. Eufrásia ainda a persuadiu mais uma vez, que bom companheirinho teria se aceitasse o bichano, tão precisado de carinho, boa ração e um nome. Voltaria mais tarde, para saber. Beijinhos perdidos, os de Helena a selar os lábios.

 

Foi um alívio ouvir novamente o relógio gato, reviver tempos de recato, discrição e delicadeza em praça pública. Não que pensasse algo indesejado das moças que saiam, mas preferia mais silêncio, menos tagarelice. Aquele homem, travestido de mulher, o tal Angel, da manhã passada em casa de Matilde, voltou-lhe à mente, como se cochichasse. Faria muito bem, ele dizia, se tu tomasses o bichano por companhia, nesses tempos de languidez. 

 

 

 

 

 



[1] Valsa canção brasileira, composta por Alvarenga/Chiquinho Sales/Ranchinho