Querências de
As raparigas alegres de marré de si não haviam fechado questão sobre os pedaços de cochicho que flagraram, madrugada adentro. Tomavam seu desjejum, as bolas de Berlim a suspirar na cesta de palhinha que compunha a mesa para dois. O chá amargo esfriava no bule e ambas iniciavam uma frase ao mesmo tempo, interrompiam e gemiam, como se movidas a marcação teatral. De uma coisa estavam seguras. Fora Helena, liberta de Troia, a que viram sair sorrateira, logo que o galo cantou pela terceira vez. Mordiam-se, as duas, para fofocar com Matilde, três sobrados ladeira acima, vontade sem medida de sujar as pegadas de Fátima na escada que dava para o segundo piso. Qual a razão para invejas, ciúmes, calúnias, difamações, intrigas? A ideia de que Fátima tinha sortes, marido morto, escritor com quem flertar e agora aquela rapariga estrangeira a lhe dizer lirismos na madrugada? Vontade quase incontrolável de rasgar as vestes despudoradas da amiga glutona, sim, tinham Fátima na condição de amiga de duas décadas, que era o tempo de convívio na Alfama.
O que se contará de chofre, para evitar qualquer malquerença, José, que Deus o guarde, subira certa murada, no inicio do casório, tempo ainda em que se jogavam as tralhas no Ano Bom, a espatifar pelas calçadas. Fora um deslize apenas, com a bufona de revista do Carlos Bittencourt, a tal da Abigail. José voltou compungido, manchado no colarinho, a exalar Chanel falsificado pelas partes. E agora vinha Helena, liberta de Troia, a dizer-se filha de dama do teatro português, desafortunada pelo comportamento mortiço, pai desconhecido. A moça contou que vivera uma infância até lépida, de trupe em trupe, vinha em vinha, a olhar a mãe despir-se e tornar a vestir négligé. Sempre havia de comer, beber e um canto na charrete para dormir, além de histórias picantes, certa ternura, menos da mãe que dos colegas de profissão. Aos quinze anos, Helena foi cuidar de seus sonhos, a colher uvas no Douro. Hoje contava trinta e dois, mulher feita, conscienciosa e linda. Aconteceu de acostar-se com o Jorge, há quatro noites, no trem noturno. Nunca o fizera assim, por bel prazer. Combinaram de não mais se ver, o que muito a confrangia. Helena entrou em herbanário, já em Lisboa, com uma receita forjada de Misoprostol. A moça do balcão, esclarecida, lhe prescreveu Levonorgestrel e recomendou consulta médica, para liberar-se de doenças duras.
Fica o dito pelo não dito, Fátima colheu aquela meia filha no calor da lareira, lhe deu leite de burra, caldo verde e brisa de liz. A manhã quase se cumprira quando a senhora desceu, um tanto desfolhada, para tornar a subir as escadas, três sobrados ladeira acima, à cata de Matilde. Murmurava o Fado da Alfama e já não resfolegava tanto. Vestia um vestido marinho, de mangas longas, abaixo dos joelhos, gola fechada.