segunda-feira, 22 de julho de 2024

Contos de Malhas e Mourarias 7




sericaia



Querências de cericá

 

 

As raparigas alegres de marré de si não haviam fechado questão sobre os pedaços de cochicho que flagraram, madrugada adentro. Tomavam seu desjejum, as bolas de Berlim a suspirar na cesta de palhinha que compunha a mesa para dois. O chá amargo esfriava no bule e ambas iniciavam uma frase ao mesmo tempo, interrompiam e gemiam, como se movidas a marcação teatral. De uma coisa estavam seguras. Fora Helena, liberta de Troia, a que viram sair sorrateira, logo que o galo cantou pela terceira vez. Mordiam-se, as duas, para fofocar com Matilde, três sobrados ladeira acima, vontade sem medida de sujar as pegadas de Fátima na escada que dava para o segundo piso. Qual a razão para invejas, ciúmes, calúnias, difamações, intrigas? A ideia de que Fátima tinha sortes, marido morto, escritor com quem flertar e agora aquela rapariga estrangeira a lhe dizer lirismos na madrugada? Vontade quase incontrolável de rasgar as vestes despudoradas da amiga glutona, sim, tinham Fátima na condição de amiga de duas décadas, que era o tempo de convívio na Alfama. 

 

O que se contará de chofre, para evitar qualquer malquerença, José, que Deus o guarde, subira certa murada, no inicio do casório, tempo ainda em que se jogavam as tralhas no Ano Bom, a espatifar pelas calçadas. Fora um deslize apenas, com a bufona de revista do Carlos Bittencourt, a tal da Abigail. José voltou compungido, manchado no colarinho, a exalar Chanel falsificado pelas partes. E agora vinha Helena, liberta de Troia, a dizer-se filha de dama do teatro português, desafortunada pelo comportamento mortiço, pai desconhecido. A moça contou que vivera uma infância até lépida, de trupe em trupe, vinha em vinha, a olhar a mãe despir-se e tornar a vestir négligé. Sempre havia de comer, beber e um canto na charrete para dormir, além de histórias picantes, certa ternura, menos da mãe que dos colegas de profissão. Aos quinze anos, Helena foi cuidar de seus sonhos, a colher uvas no Douro. Hoje contava trinta e dois, mulher feita, conscienciosa e linda. Aconteceu de acostar-se com o Jorge, há quatro noites, no trem noturno. Nunca o fizera assim, por bel prazer. Combinaram de não mais se ver, o que muito a confrangia. Helena entrou em herbanário, já em Lisboa, com uma receita forjada de Misoprostol. A moça do balcão, esclarecida, lhe prescreveu Levonorgestrel e recomendou consulta médica, para liberar-se de doenças duras.

 

Fica o dito pelo não dito, Fátima colheu aquela meia filha no calor da lareira, lhe deu leite de burra, caldo verde e brisa de liz. A manhã quase se cumprira quando a senhora desceu, um tanto desfolhada, para tornar a subir as escadas, três sobrados ladeira acima, à cata de Matilde. Murmurava o Fado da Alfama e já não resfolegava tanto. Vestia um vestido marinho, de mangas longas, abaixo dos joelhos, gola fechada.