domingo, 23 de junho de 2024

Contos de malhas e mourarias 6






Os tomateiros

 

 

Por instantes, o tempo ceou. Aquela moça, de beleza intrigante, amolecida entre seios, sofrera grande decepção. Fátima não lhe culpou, certas mulheres são musa de ópera. Os cabelos castanho avermelhados, ondulados, volumosos, perfumosos de jasmim, espalhavam-se sem dó sobre as margaridas do vestido. Se estivesse bem, Helena teria olhado de comprido para os trajes e avisado, gentil, estás a exagerar nas exposições. Agora, por sabe-se lá que razão, tratava de agasalhar-se entre as carnes mal cobertas daquela senhora excêntrica, que conhecera há dois meses. Um certo frêmito perturbou o espirito de Fátima, em geral apaziguado nos desejos. Helena, liberta de Troia, a agarrar-lhe as escápulas, descia e subia as mãos em síncope até a cintura, de corte sutil. Dona de longilíneos braços e mãos de dedos longos, executava movimentos circulares de levantar os mortos, que envolviam e desenvolviam as curvas renais. Fátima julgou-se em delírio. Com medo de cair nos braços de Lole, lá estava ela, imersa em cabelos de fogo e rosto banhado de lágrimas, tocada por mãos de rinoceronte ibérico, comovente situação. Sem fôlego e sem querer que a perturbação passasse, Fátima custou a crer que Helena estivesse em bom juízo. Sim e não. Os dorsos, sincrônicos, escorregaram sobre um tapete felpudo em frente a lareira apagada, Helena a aninhar-se no colo farto, agora todo a si pertencente. Fátima fez o que cabia, acolheu, acalentou e a moça tinha a dimensão de menina delicada. Sem jamais ter tomado crianças nos braços, o susto disparou os batimentos do coração de avó, mãe, moça nova, que Helena sentiu e esperou, ainda a soluçar. Meia hora se passou nesse idílio, de firmes consequências. 

 

Havia de escoar algum tempo, Fatima em embalar imperceptível, Helena a deixar um rasto de lágrimas por sobre as margaridas, sem detença das mãos, que passearam onde quiseram, enquanto as de Fátima, diligentes, asilavam. O assombro veio, mesmo, de um gesto cúmplice, de uma alça rompida. O líquido verteu, generoso, sabor que lembrava melão doce. Fátima doou, Helena sorveu, até secar.

 

A moça dormiu, de ressonar. Como mãe que deita o filho ao berço, Fátima depôs o corpo sobre o tapete, puxou do sofá uma manta leve e dois almofadões, compondo um descanso suave para esta nova companhia. José havia criado um mecanismo para a lareira que não demandava lenha. Acionava-se o controle da calefação e lá vinha delicada chama, de prazeroso calor. Fatima, antes de erguer-se, ainda demorou os olhos naqueles cabelos, que tratou de harmonizar. Cobriu-se com um roupão que ficava pendurado no banheiro e foi para a cozinha, preparar um lanche para quando Helena despertasse e pudesse contar o que se passou.

 

Nesse ínterim, Lole lembrou-se de um quiosque de Pasteis-de-Belém, próximo à estação ferroviária. Das idas e vindas dos trens, dos passageiros, dos próprios passos, obteve sossego íntimo. Caiu em si. O frêmito luxurioso passara. Sentou-se com um prato diante si e logo o garçom lhe trouxe um moscatel, deu a provar e serviu uma taça. O sol das quinze horas cintilava, ameno. Consultou, no telefone celular, a lista de óbitos e os que traziam as circunstâncias do passamento. Dedicou três horas a dois poemas curtos, aprovou-os quando os concluiu. Enviou-os para o editorial. Estavam de acordo também para o próximo seminário de literatura no qual atuaria. Tomou o primeiro trem noturno para Barca D’Alva às dezenove horas.

 

Neste momento, em casa de Fátima, Helena custou a entender onde e com quem estava. A pílula do dia seguinte, ingerida pela hora do almoço, lhe provocou náuseas e gemidos. Ainda tinha nos lábios o estranho gosto de melão maduro. Fátima, que esperava sentada à janela, veio prontamente socorrer. Havia um pouco de sangue na manta. 

 

A conversa desenvolveu-se diante da lareira, tomadas as providências necessárias para sossego das almas ali envolvidas. Tudo teve início com a visita a uma horta comunitária, em meio a tomates maduros.