quinta-feira, 23 de maio de 2024

Contos de malhas e mourarias 5


Helena, liberta de Troia

 

 

O amigo elegante a convidou a cear em um vinhedo, às bordas do Douro, em Barca d'Alva. Mariano Lole esperou pela senhora a caminhar, de um lado a outro, sobre um tapete de tulipas, por meia hora, na Estação Ferroviária de Santa Apolónia. Era um querer peculiar o seu, em vestido mínimo, sem mangas e acima dos joelhos, transparente, três tons acima da cor da pele, pontilhado de margaridas do tamanho da palma da mão, metade dos seios à mostra, quadris e coxas torneados pelo tecido, viuvez explícita e pública, sem rendas submersas ou sapatos.  O local do encontro fervilhava de anónimos, que iam daqui para ali. O alto falante tocava, em volume tolerável, uma canção brasileira a descrever azul, espaço, arrecifes e bancos de areia. Ainda era prematuro, para Lole, considerar enlace de qualquer natureza. Um componente de ternura pairava no ambiente que os atraia, embora aquela delusão bacante que o perseguia. O encontro daquela manhã de domingo evocava ambiguidades, obrigava ocultar-se e despir. O turbilhão da estação, a saída da capital, promessa de dia lúbrico. Se houvera votos, gargantilhas ou convite para mudança de domicílio, os registros ignoravam. José ainda dormia, em retrato, no criado mudo da sabina. Eram esperados, por parte do escritor, dengos, passarinhações, aforismos e a queda das torres puritanas. Obstinara-se por aquela mulher antiga, de proporções circenses, a cheirar fermento. 

Fátima, de sua vez, com hercúleo esforço, reduzira em quatro número o seu manequim. Trocou o lado de pentear seu pixaim e também a tintura. Meteu a pinça entre as sobrancelhas e deu suavidade à sua expressão infantil. Desculpava-se com José, como podia. Há vários dias que não ia visitar a Estefânia, confeiteira da Pão Nosso d’Alfama. O vestido sem mangas goiaba, onde se espalhavam as margaridas, ela o sentia ousado para a ocasião. Nada havia que lutar, abrir caminho, disputar, seduzir, provar. Apenas presença, que desejaria leve. O cheiro de José ainda era sentido pela casa. A frajola, a dormitar sob um facho de sol no beiral da janela, ainda decidia se ficava ou dava pinotes. O felino observava aquele pinicar pela sala, o corrido a tocar na vitrola, pelos da nuca oriçados. O relógio contava os minutos e Fátima nada de calçar as miúdas sandálias brancas, sem salto. Três toques na porta a fizeram desmanchar o idílio. Quem sabe fosse Mariano, excedendo as expectativas. Era Helena, liberta de Troia. A moça despencou-se entre os seios de Fátima, a chorar.