quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Cartas a minha professora de canto 2



Querida Sira.

Estou mergulhada nesta experiência do Terra Sonora, que troca “música” com o músico Paulo Santos, moço aí do estado irmão, mineiro.
O moço já viajou o mundo – você sabe, Sira, tocando canos de pvc e outras bugigangas, de um jeito tão engenhoso que fiquei intrigada, se era piada ou algo sagrado acontecendo ali “nas minhas barbas” – certamente as duas verves, que caminham juntas.
Uma pitada de ironia e respeito foi o que percebi a principio. E um desejo grande de equilibrar a autoestima, eu, cantorinha curitibana diante de viajado músico.
Lembrei-me de uma aula nossa, em que você citou o encontro entre Einstein e Rohden, tanto tempo passado em silêncio, fruindo energia, estranha energia.
Músicos não deveriam falar. Deveriam apenas tocar.
Lembrei-me de você me falando sobre as limitações das pessoas, a dificuldade delas em “aguentar” estes encontros. Sobre a necessidade de disciplina, e disciplina, e disciplina, para aguentar esses encontros.
Lembrei-me da forma como você me abriu para a fruição de Rohden, ajudando-me a fazer um intercambio entre a experiência “vivida e saboreada” e “pensada e inteligida”.
Fui fazer o exercício, enquanto a tarde passava ali na Belas Artes, de ver além das aparências, ouvir além das reticências, dos malestares neste meu primeiro encontro com o “alienígena” Paulo Santos.  Tive algum tempo silencioso para meditar sobre essas coisas, sem concluir nada, apenas “parar tudo” e observar, respirar. E tentar aprender.
Tenho certeza, somente um músico ali era capaz de entender o “alienígena” de imediato. Os outros estavam pasmos, “nervosos”. Incomodados. Deslocados.
Eu não estive no primeiro – nem no segundo – encontro entre o Terra e o Paulo Santos, então não ficarei aqui falando de impressões externas, dos outros.  Vou voltar o espelho para meu recuo diante do mundo, vendo de dentro para fora.
Eu já me apartei do mundo, Sira (talvez cedo demais, se pensar em tua experiência, em pleno vigor aos 50 anos). Volto ao mundo somente quando alguém me provoca muito, pelo afeto.
Fiquei tentada a ir almoçar com o grupo no dia de hoje, mas “passei”. Um caldo verde e silêncio me farão melhor. E eu, vibrando melhor, farei melhor pelo grupo, é o que sinto. Perco a oportunidade, desse modo, de ver o mundo como ele se apresenta, cheio de “feijões” e talheres tilintando nos pratos, regado a histórias de viagem que não partilharei... não sentirei culpa, nem pena, nem saudade. Uso a hora do almoço para falar contigo.
Fiquei olhando aquele “alienígena”, de discurso etéreo e sem trama definida. Sua fala ia adquirindo significado para mim aos poucos, como quando tentamos nos comunicar com alguém num idioma diferente. O Paulo Santos passava de um “caco” a outro, coisas como tocar com o UAKTI na Acrópole, usar microfones de baixa qualidade para dar qualidade aos objetos sonoros que ele constrói com os parceiros. O Paulo Santos contou da experiência que anda tendo com uma criança autista, dando-lhe aulas de música. A criança não fala, faz apenas ruídos sem contorno dos lábios e  aprendeu com ele a fazer o “fffffffff”, passando então, feliz da vida, a produzir sons mais balbuciados. E vai se comunicar melhor, certamente, pois o universo musical e creativo está à disposição dela em cada peça que o Paulo Santos usa para construir seus instrumentos, que “viram” musicais nas mãos dele. Há um violão “horroroso”, que uma pessoa menos sensível transformaria em lenha. Foram estendidas três cordas de outro instrumento (cello?) no pinho pintado rusticamente de preto. A técnica de tocar varia – percussão com uma vareta de madeira e uso de arco de violino. A afinação usada é Mi. Três cordas em Mi, oitavas distintas. O que gerou o “Trimi”. Que ‘canta’ potente feito um leão. Bonito de doer. Não tem como não se encantar com uma coisa dessas. E ficar quieto, muito quieto. A palavra, nessas hora, polui, limita.
Uma das "primeiras falas" que ouvi do músico Paulo Santos foi: 'somos basicamente memória. E as memórias boas vão se filtrando, gravadas num “chip”. E a natureza descola este chip, para colar em novo corpo físico, que vai ampliar tais memórias, preserva-las talvez'.
·   Outra vez lembrei-me de você. Das memórias bonitas que você já dividiu comigo, vivências férteis que teve, como professora, como pessoa. E pensei: às vezes as pessoas transferem suas memórias – pois vão esquecer delas, esvaziar-se delas, abrindo caminho para arquivos mais primorosos.
Há muito o que dizer ainda. Hoje tenho o segundo encontro com o músico em questão. E ele vai transferir memórias para um público incógnito. E vai dividir sonoridades ímpares com o Terra Sonora, que lhe responde sóbrio, “ensaiado”, mantendo-se em trilhos conquistados em vários encontros de trabalho. Experiência em que é preciso se deter.  Valorizar.
Porque ela abre discussão sobre novo tema: a dificuldade que as pessoas apresentam para “estudar” – quantas vezes você trouxe esta preocupação para as nossas aulas?
Deixei muitas pontas de novelo soltas neste novo relato.
Não fui visita-la em sua nova casinha como eu queria. Não liguei para você, tenho “fobia” de telefone. Agora perdi meu celular. Se eu morrer hoje, vão ter dificuldade em descobrir para quem devem ligar... sou irresponsável e negligente, aparentemente não me importo os outros. Mas é desapego. Eu estaria bem meditando sob uma árvore, acredite. Ou caminhando, sem parar.
Ainda não sabemos usar a telepatia. O que é uma pena. Porque estou sempre contigo. Em minhas preces, em minhas ações diárias, estou sempre contigo.
Espero te encontrar em paz. Que o silêncio e a solitude lhe permitam ouvir as vozes “do lado de lá” – parece ser mais fácil falar com os mortos, é o que sinto e faço, sem rancores com a dificuldade de comunicação que enfrento com os encarnados, a quem desejo abraçar mais.
Saiba que me encontro em situação análoga à sua. Acredito ter buscado paz na solitude. O contato com o Evangelho, os ensinamentos de Buda, Rohden e as leituras (dos romances históricos às coisas acadêmicas) preenchem qualquer perspectiva de solidão.
Fiquei pensando se você gostaria de “ouvir” algum livro que já tenha lido. Se isso te agradaria de alguma maneira. Posso gravar leituras para você, se quiser.
Mais tarde te escrevo mais, contando sobre a experiência da EMBAP na tarde e noite de hoje.
O que você vai encontrar nestes relatos que te ofereço de meu mausoléu é “uma ligeira indigitação, como certas flechas ou outros marcos à beira da estrada e nas encruzilhadas dos caminhos.“
Que possamos nos encontrar em voo um dia desses.

Sinto na palma a textura curiosa
e nos ouvidos os suspiros do vento
das brujas, diriam eles
Sinto no coração a geleira a me chamar, distante
Tenho cumprido a missão, minha mãe
Tenho cumprido a missão

Sinto no lago dos meus dias infinita saudade
e no encontro entre água e foz
as minhas feitiçarias
Sinto, e a lava é premente, lodosa
Tenho cumprido a missão, meu avô
Tenho cumprido a missão

Pai, eu falo com os mortos
e te deixo sem saber de mim por meses
Sinto que está bem assim
Fui moldada pelas erupções
e hoje me torno cinza

Não extingui a chama porque a memória
das coisas boas
está sofrendo mutações
para trocar de corpo em breve

Não tenho dó, às vezes sinto a rudeza do apego.
Os vulcões do mundo aguardam meu voo solitário.
Entretanto já não vou só.

E assim, sem disposição para sanar as palavras
Consinto por cumprir o poema
Que seja leve, que seja beijo, que seja teu.
Tu que não me deixas escolha.
                                           
Liane Guariente

Meu amor para você.