Querida
Sira.
Estou
mergulhada nesta experiência do Terra Sonora, que troca “música” com o músico
Paulo Santos, moço aí do estado irmão, mineiro.
O
moço já viajou o mundo – você sabe, Sira, tocando canos de pvc e outras
bugigangas, de um jeito tão engenhoso que fiquei intrigada, se era piada ou
algo sagrado acontecendo ali “nas minhas barbas” – certamente as duas verves,
que caminham juntas.
Uma
pitada de ironia e respeito foi o que percebi a principio. E um desejo grande
de equilibrar a autoestima, eu, cantorinha curitibana diante de viajado músico.
Lembrei-me
de uma aula nossa, em que você citou o encontro entre Einstein e Rohden, tanto
tempo passado em silêncio, fruindo energia, estranha energia.
Músicos
não deveriam falar. Deveriam apenas tocar.
Lembrei-me
de você me falando sobre as limitações das pessoas, a dificuldade delas em
“aguentar” estes encontros. Sobre a necessidade de disciplina, e disciplina, e
disciplina, para aguentar esses encontros.
Lembrei-me
da forma como você me abriu para a fruição de Rohden, ajudando-me a fazer um
intercambio entre a experiência “vivida e saboreada” e “pensada e inteligida”.
Fui
fazer o exercício, enquanto a tarde passava ali na Belas Artes, de ver além das
aparências, ouvir além das reticências, dos malestares neste meu primeiro
encontro com o “alienígena” Paulo Santos.
Tive algum tempo silencioso para meditar sobre essas coisas, sem
concluir nada, apenas “parar tudo” e observar, respirar. E tentar aprender.
Tenho
certeza, somente um músico ali era capaz de entender o “alienígena” de imediato. Os
outros estavam pasmos, “nervosos”. Incomodados. Deslocados.
Eu
não estive no primeiro – nem no segundo – encontro entre o Terra e o Paulo
Santos, então não ficarei aqui falando de impressões externas, dos outros. Vou voltar o espelho para meu recuo diante do
mundo, vendo de dentro para fora.
Eu
já me apartei do mundo, Sira (talvez cedo demais, se pensar em tua experiência,
em pleno vigor aos 50 anos). Volto ao mundo somente quando alguém me provoca
muito, pelo afeto.
Fiquei
tentada a ir almoçar com o grupo no dia de hoje, mas “passei”. Um caldo verde e
silêncio me farão melhor. E eu, vibrando melhor, farei melhor pelo grupo, é o
que sinto. Perco a oportunidade, desse modo, de ver o mundo como ele se
apresenta, cheio de “feijões” e talheres tilintando nos pratos, regado a
histórias de viagem que não partilharei... não sentirei culpa, nem pena, nem
saudade. Uso a hora do almoço para falar contigo.
Fiquei
olhando aquele “alienígena”, de discurso etéreo e sem
trama definida. Sua fala ia adquirindo significado para mim aos poucos, como
quando tentamos nos comunicar com alguém num idioma diferente. O Paulo Santos
passava de um “caco” a outro, coisas como tocar com o UAKTI na Acrópole, usar
microfones de baixa qualidade para dar qualidade aos objetos sonoros que ele
constrói com os parceiros. O Paulo Santos contou da experiência que anda tendo
com uma criança autista, dando-lhe aulas de música. A criança não fala, faz
apenas ruídos sem contorno dos lábios e
aprendeu com ele a fazer o “fffffffff”, passando então, feliz da vida, a
produzir sons mais balbuciados. E vai se comunicar melhor, certamente, pois o
universo musical e creativo está à disposição dela em cada peça que o Paulo Santos
usa para construir seus instrumentos, que “viram” musicais nas mãos dele. Há um
violão “horroroso”, que uma pessoa menos sensível transformaria em lenha. Foram
estendidas três cordas de outro instrumento (cello?) no pinho pintado
rusticamente de preto. A técnica de tocar
varia – percussão com uma vareta de madeira e uso de arco de violino. A
afinação usada é Mi. Três cordas em Mi, oitavas distintas. O que gerou o
“Trimi”. Que ‘canta’ potente feito um leão. Bonito de doer. Não tem como não se
encantar com uma coisa dessas. E ficar quieto, muito quieto. A palavra, nessas
hora, polui, limita.
Uma
das "primeiras falas" que ouvi do músico Paulo Santos foi: 'somos basicamente memória. E as
memórias boas vão se filtrando, gravadas num “chip”. E a natureza descola este
chip, para colar em novo corpo físico, que vai ampliar tais memórias,
preserva-las talvez'.
· Outra
vez lembrei-me de você. Das memórias bonitas que você já dividiu comigo,
vivências férteis que teve, como professora, como pessoa. E pensei: às vezes as
pessoas transferem suas memórias – pois vão esquecer delas, esvaziar-se delas,
abrindo caminho para arquivos mais primorosos.
Há
muito o que dizer ainda. Hoje tenho o segundo encontro com o músico em questão.
E ele vai transferir memórias para um público incógnito. E vai dividir
sonoridades ímpares com o Terra Sonora, que lhe responde sóbrio, “ensaiado”,
mantendo-se em trilhos conquistados em vários encontros de trabalho.
Experiência em que é preciso se deter.
Valorizar.
Porque
ela abre discussão sobre novo tema: a dificuldade que as pessoas apresentam
para “estudar” – quantas vezes você trouxe esta preocupação para as nossas
aulas?
Deixei
muitas pontas de novelo soltas neste novo relato.
Não
fui visita-la em sua nova casinha como eu queria. Não liguei para você, tenho
“fobia” de telefone. Agora perdi meu celular. Se eu morrer hoje, vão ter
dificuldade em descobrir para quem devem ligar... sou irresponsável e
negligente, aparentemente não me importo os outros. Mas é desapego. Eu estaria
bem meditando sob uma árvore, acredite. Ou caminhando, sem parar.
Ainda
não sabemos usar a telepatia. O que é uma pena. Porque estou sempre contigo. Em
minhas preces, em minhas ações diárias, estou sempre contigo.
Espero
te encontrar em paz. Que o silêncio e a solitude lhe permitam ouvir as vozes
“do lado de lá” – parece ser mais fácil falar com os mortos, é o que sinto e
faço, sem rancores com a dificuldade de comunicação que enfrento com os
encarnados, a quem desejo abraçar mais.
Saiba
que me encontro em situação análoga à sua. Acredito ter buscado paz na
solitude. O contato com o Evangelho, os ensinamentos de Buda, Rohden e as
leituras (dos romances históricos às coisas acadêmicas) preenchem qualquer
perspectiva de solidão.
Fiquei
pensando se você gostaria de “ouvir” algum livro que já tenha lido. Se isso te
agradaria de alguma maneira. Posso gravar leituras para você, se quiser.
Mais
tarde te escrevo mais, contando sobre a experiência da EMBAP na tarde e noite
de hoje.
O
que você vai encontrar nestes relatos que te ofereço de meu mausoléu é “uma ligeira indigitação, como certas
flechas ou outros marcos à beira da estrada e nas encruzilhadas dos caminhos.“
Que
possamos nos encontrar em voo um dia desses.
Sinto na palma a textura curiosa
e nos ouvidos os suspiros do vento
das brujas, diriam eles
Sinto no coração a geleira a me chamar, distante
Tenho cumprido a missão, minha mãe
Tenho cumprido a missão
Sinto no lago dos meus dias infinita saudade
e no encontro entre água e foz
as minhas feitiçarias
Sinto, e a lava é premente, lodosa
Tenho cumprido a missão, meu avô
Tenho cumprido a missão
Pai, eu falo com os mortos
e te deixo sem saber de mim por meses
Sinto que está bem assim
Fui moldada pelas erupções
e hoje me torno cinza
Não extingui a chama porque a memória
das coisas boas
está sofrendo mutações
para trocar de corpo em breve
Não tenho dó, às vezes sinto a rudeza do apego.
Os vulcões do mundo aguardam meu voo solitário.
Entretanto já não vou só.
E assim, sem disposição para sanar as palavras
Consinto por cumprir o poema
Que seja leve, que seja beijo, que seja teu.
Tu que não me deixas escolha.
Liane Guariente
Meu
amor para você.